São Paulo, terça-feira, 17 de janeiro de 1995
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Imaginário africano tem painel confuso

KÁTIA CANTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

A iniciativa da exposição "Os Herdeiros da Noite, Fragmentos do Imaginário Negro", que está na Pinacoteca até o dia 11 de fevereiro, é louvável. Afinal, seria impossível rastrear as origens e desenvolvimento do carnaval, da arte e da religiosidade brasileiras sem marcar os passos das grandes personalidades negras que ajudaram a compor nossa cultura.
Não para repetir o clichê da cartilha politicamente correta, mas para que o Brasil possa de fato construir seu banco de dados da memória, é preciso que se reúnam os elementos da cultura africana, semeados a partir da escravidão, e espalhados caoticamente pelo país, desde então.
Esses cacos culturais, até agora, não formaram um mosaico, no sentido de um entendimento de suas origens e desenvolvimento. Até agora, não compreendemos o que seja nosso afrobrasilianismo, ou quais sejam as similaridades e os contrastes entre o Brasil e a cultura iorubá, oriunda do oeste africano.
O problema é que, após visitar a exposição "Os Herdeiros da Noite", continuamos sem decifrar essas questões. Que as manifestações mostradas sejam dispersas, fragmentadas, OK. A vida não é um catálogo organizado. Mas a fragmentação estética apresentada poderia ser melhor explicada ao público.
Sob curadoria do diretor da Pinacoteca, Emanoel Araújo, a exposição empresta como marco histórico os 300 anos do Quilombo de Palmares, símbolo da resistência negra à crueldade escravagista. Dali em diante, toma corpo como um megaevento, exibindo vídeos, música, elementos visuais vindos do folclore e da cultura popular, como ex-votos, patuás, máscaras e bandeiras ritualistícas. Há também fotografias de Bauer Sá, Madalena Schwartz, Pedro Ribeiro e Lamberto Scipione.
A exposição contrapõe obras de procedências e estilos diversos. Mescla-se a produção de artistas negros e brancos que trabalham sob influência africana.
Lado a lado, estão um conjunto de esculturas de iconografia iorubá de mestre Didi; instrumentos litúrgicos do candomblé, de autoria de José Adário dos Santos; e obras contemporâneas e menos comprometidas com a questão da raiz.
Um bom exemplo nesse último caso é a instalação da jovem Rosana Paulino, intitulada "Parede da Memória e de Catarina" (1994). Composto por almofadinhas com retratos em serigrafia, o trabalho lembra mais uma repetição de sinistras imagens, arquitetada pelo artista francês Christian Boltanski, do que uma obra que reverbera uma identidade iorubá.
Na mistura de estilos e épocas, a constatação mais interessante é a da síntese. Os elementos sintéticos do imaginário afro, no início do século 20, na Europa, encantaram os expressionistas alemãos, além de Picasso, Paul Klee, Fernand Léger e Brancusi.
Na arte brasileira, presente à mostra, a síntese está bem representada nas telas de cores fortes e formas emblemáticas do artista Rubem Valentim.
No universo popular, a síntese reina, vitoriosa, nos ex-votos, imagens em madeira, retratando partes do corpo, construídas para se pagar promessas realizadas. Se a imagem ali é africana, a idéia de promessa é católica. Assim se compõe a mestiçagem cultural.

Exposição: Os Herdeiros da Noite - Fragmentos do Imaginário Negro
Onde: Pinacoteca do Estado (av. Tiradentes, 141, tel. 227-6329)
Quando: Terça a domingo, das 13h às 18h. Entrada franca

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