São Paulo, sexta-feira, 20 de janeiro de 1995
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Trilha sonora sugere um grande filme

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

No mundo inteiro, as gravações de ópera em vídeo são um grande sucesso. Mas eu suspeito que, para os amantes de "Don Giovanni" ou "Otello", cada encenação é menos a realização do que a frustração de um sonho. Aquilo que cada um de nós imagina ao escutar uma ópera quase nunca é suplantado pelas produções de verdade, filmadas ou ao vivo –talvez exatamente porque o que se imagina é vago, mais uma sensação do que uma imagem. Trilhas de cinema podem ter esse mesmo destino.
O novo filme de Kenneth Branagh, "Frankenstein", não vem tendo críticas muito boas, desde o lançamento. Mas o filme que se imagina, o filme sugerido pela trilha musical de Patrick Doyle tem tudo para ser um grande filme.
A parceria Brannagh-Doyle parece hoje tão estabelecida quanto outras duplas famosas –Alfred Hitchcock-Bernard Herman, ou Peter Greenaway-Michael Nyman. A nova trilha é escrita para grande orquestra, "monstruosamente grande", como diz o compositor, na mesma escala do monstro do dr. Frankenstein e das grandes imagens na tela.
Influências
Como em "Voltar a Viver", "Henrique V" e também boa parte da música para "Muito Barulho por Nada", a trilha de "Frankenstein" lembra muito o espírito do compositor inglês Elgar (1857-1934). Outras influências são claras: Rachmaninof, de um lado, e o próprio Bernard Herman de outro; pequenos fragmentos que parecem Smetana, mais alguma coisa de Mendelssohn, e alguns toques de Stravinsky na orquestração.
Berlioz seria um candidato mais apropriado para ter composto uma suíte "Frankenstein"; mas Patrick Doyle é, acima de tudo, o grande reciclador da música vitoriana no cinema, como Kenneth Branagh é um grande novo vitoriano da dramaturgia.
Sua música, à maneira de Elgar, equilibra um senso de espetáculo com uma outra forma de sentimentalismo, mais íntimo. Com seu sentido de movimento, de luz e sombra, e um talento para inventar grandes melodias e extrair delas uma centena de variantes, Patrick Doyle faz uma música intrinsecamente cinematográfica. É um cinema para os ouvidos.
Prometeu
Num ensaio que o caderno Mais! publica nas próximas semanas, Harold Bloom estuda o parentesco entre o poeta Shelley, o mito clássico de Prometeu e o Frankenstein de Mary Shelley, lembrando que o título original do romance é "Frankenstein, ou O Prometeu Moderno".
Prometeu é um dos grandes mitos explorados pelos românticos: é ele quem rouba o fogo dos deuses; mas é ele também o responsável pela alienação do homem, a distância entre o homem e os céus. Ele é o emblema da autoconsciência exacerbada, que é uma aflição de toda a poesia moderna, do romantismo aos nossos dias. Numa de suas formas, essa aflição se revela pela tentativa, sempre frustrada, de escrever a obra definitiva. Modestamente, cada um de nós reencena esse mito –quando imagina, por exemplo, um filme que ainda não viu.
Mas nós, que não somos nem Shelley, nem Mary Shelley, nos satisfazemos, algumas vezes, com a criação de um grande imperfeito poeta, ou cineasta. São ilusões de perfeição, que a modéstia, o cansaço, ou a pura falta de talento nos impedem de realizar, e que vemos, afinal, tomar corpo fora de nós. Para o verdadeiro poeta, isto é, talvez, motivo de rivalidade e angústia. Para nós, é uma felicidade e uma esperança que a música de Patrick Doyle faz reacender, enquanto esperamos para ver o "Frankenstein" de Branagh.

Disco: Frankenstein
Compositor: Patrick Doyle
Preço: R$ 18

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