São Paulo, sexta-feira, 20 de janeiro de 1995
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'Rua da Amargura' celebra poder do teatro

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tornou-se difícil dizer o que é defeito e o que é qualidade nas montagens teatrais de Gabriel Villela. Neste "Rua da Amargura" (em cartaz no Sesc Vila Nova) encontramos, depuradas, as principais características do diretor: o gosto pelas roupas multicoloridas, o folclore mineiro, uma religiosidade fortíssima –tão forte, que se faz comovente e estranha a nossos olhos urbanos e desencantados.
"Rua da Amargura" é uma adaptação do texto de Eduardo Garrido, "O Mártir do Calvário", escrito em versos, no início do século. Nos espetáculos anteriores de Villela, a religião surgia como referência, memória; torna-se agora o próprio cerne da peça. É a paixão de Cristo que vemos encenada, com técnicas de circo, luzinhas e presépio, ladainhas.
Sente-se que Gabriel Villela chegou aonde queria chegar. O que havia de ornamento, de lembrança pessoal em suas montagens anteriores –belíssimas, aliás– encontra aquilo a que tendia de fato: encenação popular, circo de roça, rito de Semana Santa, teatro em estado de graça e de inocência.
Uma comparação, todavia, se impõe. É com os autos populares criados por Romero de Andrade Lima, que refazem os ritos religiosos do Nordeste. Cânticos, procissões, altares, oratórios: à primeira vista, o pernambucano Romero de Andrade Lima e o mineiro Gabriel Villela convergem no esforço de recuperar, num país que se desnacionaliza a olhos vistos, tudo aquilo que, religião, folclore, resiste ao shopping center paranóico em que vivemos.
Mas as procissões de Romero de Andrade Lima são mais pobres, mais rústicas e sóbrias; e por isso, a mim pelo menos, comovem mais. É como se tivessem sido transportadas, sem adaptação, do ambiente rural para um teatro paulistano.
Com as montagens de Villela, sente-se movimento oposto. Não estão "vindo" do meio rural para o ambiente urbano, mas "saindo" do teatro para a rua, deixando de ser espetáculo burguês para ser evento popular.
Aliás, o instante mais comovente de "Rua da Amargura" é o começo da peça, que não se dá no palco, mas fora do teatro, no pátio do Sesc Vila Nova.
No teatro de Romero de Andrade Lima, a sobriedade, o "primitivismo" do cenário contrasta eficazmente com tudo o que há de derramado, de meloso, nas cantigas e nos sentimentos religiosos. Estes ganham, assim, o poder de umedecer, numa comoção lacrimosa e irresistível, a pobreza das cenas.
Já Gabriel Villela tem o problema contrário: tenta reduzir os recursos cênicos, as roupas, as iluminações de que dispõe. E sua tentação foi sempre a de exagerar na beleza visual. Daí que fica difícil dizer o que é defeito ou qualidade em suas criações.
O excesso de beleza pode ser às vezes um erro –as coisas ficam empetecadas, barrocas demais. Nesta montagem, Gabriel Villela está mais contido. Mas o próprio texto, em versos, e o apelo religioso direto a que recorre, "superintensificam" o sentido do espetáculo.
Sem dúvida, o diretor soube usar de ironia, de humor, purificando a cena. Mas o catolicismo da peça não está brincando em serviço. Chega a ser anti-semita, e quando Cristo é crucificado, não há meios-termos: é mesmo o Cristo quem estamos vendo no palco.
O teatro de Gabriel Villela começa a trilhar um caminho áspero –o que impõe, segundo a boa doutrina, votos de pobreza. Mas não sei se um hedonista do teatro, se um "caipira" no bom sentido, como é Gabriel Villela, pode chegar aos extremos que este projeto exigiria.
O problema, na verdade, ultrapassa a personalidade de diretores tão bons quanto Gabriel Villela e Romero de Andrade Lima. Diz respeito, em primeiro lugar, ao próprio catolicismo: sempre forte quando pobre, mas sempre tentado pelos esplendores de suas catedrais, afrescos, ouropéis. O visível em luta com o invisível; desde Pascal, pelo menos, é esse o dilema católico.
Em segundo lugar, trata-se de fazer a integração, no Brasil contemporâneo, de uma tradição rural ameaçada, transformando-a em espetáculo para um público moderno. Investir na nostalgia, nas "raízes"? Fazer do teatro uma espécie de reserva ecológica para gostos e sentimentos em extinção?
Tal esforço produz resultados belíssimos. Mas seu efeito só existe à medida que aposta no fato de que todo esse mundo tradicional está distante de nós, persiste apenas como uma memória, condenada a desaparecer. Não "revive" em cada espetáculo, e sim é apenas "evocada", beneficiando-se da distância que a encenação se empenha em anular.
"Rua da Amargura" é, assim, uma bonita celebração do poder do teatro. E de tudo o que –tradição, circo, fé popular– parece condenado à morte, mas opera, mesmo assim, o milagre de uma ressurreição.

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