São Paulo, sexta-feira, 20 de janeiro de 1995
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Plínio Marcos sai da maldição para o riso

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

"Navalha na Carne" começa e tudo indica que vem pela frente o Plínio Marcos de sempre. O palco está carregado de fumaça, em ambiente miserável, com janelas altas, asfixiantes, paredes de viaduto, com o concreto em ruínas, um guarda-roupa de quarto de cortiço, uma privada suja, de dar nojo. A prostituta veste uma calcinha que tira do varal, no banheiro sujo.
É tudo um exagero, um excesso, um Plínio Marcos que está além dele mesmo. Um clichê de Plínio Marcos. Mas o autor, claro, é maior do que o seu personagem de público, do que o seu clichê. E "Navalha na Carne" vai aos poucos ganhando corpo, em grande parte por conta de Diogo Vilela, que faz o cafetão de nome Vado.
Ele é engraçado, cômico, mas de um gênero que está no limite para a tragédia. Ou ainda, para a violência, que é aquela metade do personagem que Diogo Vilela apresenta desde logo, em "Navalha na Carne". No espetáculo todo, o ator salta da violência para a piada e de volta para a agressão com uma facilidade aterradora.
Uma composição que a prostituta Neusa Sueli, interpretada por Louise Cardoso, não acompanha. Na estréia em São Paulo, ao menos, a atriz deixou escapar muito do que há de tragicômico, de limítrofe, na personagem desenhada por Plínio Marcos. Permaneceu, como o cenário, no clichê do maldito. Faz uma prostituta que senta com as pernas abertas, uma prostituta-padrão, por assim dizer.
Deixa fugirem momentos de força como, por exemplo, aquele em que diz, repetidas vezes, no que deveria ser um crescendo, "por causa da grana", respondendo ao próprio cafetão por que ele continua com ela. Na cena, Louise Cardoso parecia na verdade estar bem longe dali, alheia ao palco.
Enquanto o ator vivia o papel, a atriz cumpria o diálogo, o que é um grande desperdício, já que a poesia de Plínio Marcos está antes na emoção provocada pela palavra do que na palavra, propriamente.
A dramaturgia de Plínio Marcos é, sempre foi, uma arte grosseira, não pelos palavrões, claro, mas pela falta de acabamento, pelo jorro de criação. Não mudou, com o tempo. O texto de "Navalha na Carne", que é de 1967, expõe a rudeza com maior evidência talvez nos seus anacronismos, em expressões da gíria de então, como "tutu", "gamado", "brotinho", "metal", "podicrê", "broca".
A montagem aceita e brinca com a linguagem, brinca com o mundo todo de Plínio Marcos. Por exemplo, no figurino do gigolô de Diogo Vilela, de calças apertadas e camisa aberta e bigode fino.
Por vezes, brinca até demais, como na cena do estupro, que está sugerida no texto, quando muito, mas que aparece por inteiro na montagem. Aparece, mas como farsa, como piada, o que é ainda mais assustador. A tensão entre comédia e tragédia, que é bem própria de Plínio Marcos, nunca foi tão explicitada. Quando o homossexual feito por Hilton Cobra salta do estupro gritando, ao ser tocado pela prostituta Neusa Sueli, "não toque em mim, mulher", o público vem abaixo em risadas.
A passagem do homossexual Veludo é quase toda cômica, até no recurso de falar diretamente ao público, o que, por sinal, ele faz mais do que falar aos demais personagens. A transição do cômico para o trágico, no caso de Veludo, se dá de forma mais surpreendente do que com Vado, se dá através da violência brutal, como a tortura que corta a respiração da platéia, ou da piada mais desconcertante.
Em "Navalha na Carne", Plínio Marcos salta estranhamente da maldição para a gargalhada, o que já vinha acontecendo com Nelson Rodrigues. Muito provavelmente, uma mudança que é acima de tudo do brasileiro, e que o teatro de Plínio Marcos, como alías é próprio do melhor teatro, só faz espelhar.

Título: Navalha na Carne
Direção: Marcus Alvisi
Quando: De quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h
Onde: Teatro Cultura Artística (r. Nestor Pestana, 196, tel. 258-3616)
Quanto: R$ 12,00 (quinta e domingo) e R$ 15,00 (sexta e sábado)

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