São Paulo, sexta-feira, 20 de janeiro de 1995
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Ano começa com uma obra-prima do Irã

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: Através das Oliveiras
Produção: Irã, 1994
Direção: Abbas Kiarostami
Onde: Cine Belas Artes (sala Cândido Portinari)

A primeira dificuldade, diante de "Através das Oliveiras", é conciliar a imagem que se criou do Irã (mulheres com o rosto coberto, aiatolás obscurantistas, mundo das trevas) com um filme luminoso, como este criado por Abbas Kiarostami.
Aqui, estamos diante de pessoas comuns, sentimentos comuns, modos de raciocínio comuns. Resumindo a história: um diretor de cinema vai ao norte do país para formar o elenco de seu filme sobre o terremoto ocorrido em 1990 na região.
Escolhe uma moça e um rapaz, que se viram e se apaixonaram durante os funerais das vítimas do terremoto.
Mas, se paixão e mortes na família os aproximam, existe um abismo de classes a distanciá-los. Ela é rica (isto é, sua casa não foi destruída) e sabe ler; ele é pobre (mora numa tenda) e analfabeto.
A interdição pesa sobre seu amor. No caso, a avó da menina a proíbe até mesmo de dirigir a palavra ao rapaz.
Em torno disso, gira toda a ficção. Pelo menos para quem não viu outros trabalhos de Kiarostami. Não custa, em todo caso, recordar: o filme que o diretor prepara é "E a Vida Continua", em que um diretor de cinema e seu filho procuram, após o terremoto, o jovem protagonista de "Onde Fica a Casa de Meu Amigo".
Ora, "Onde Fica a Casa de Meu Amigo" e "E a Vida Continua" são dois filmes de Kiarostami (em 1988 e 1992, respectivamente). Mas o que se esboça em "Através das Oliveiras" não é propriamente uma série sobre a vida rural no Irã (não ter visto os filmes anteriores não prejudica em nada sua compreensão). É, antes, uma espécie de tapeçaria que se desdobra, com imagens recorrentes, mas onde o conjunto da composição vai acrescentando novos desenhos e ganhando novos significados.
Essa é a essência de um trabalho progressivo, construído à maneira de um espelho. O que aparece na tela não significa, objetivamente, nada. Só o olhar que dirigimos a ela pode dar vida e sentido ao que vemos.
Daí não ser estranho o filme ter provocado dois tipos de reação simetricamente opostas na platéia, quando exibido na Mostra Internacional de Cinema de 94. Quem quiser ver ali apenas uma história em que pouca coisa acontece, está no seu direito. Quem quiser ver uma história em que tudo acontece, também.
Isto é, o filme não se impõe como um discurso do artista sobre o amor, o mundo, o terremoto etc. Ele se constrói como uma indagação sobre a natureza das coisas (do amor, no caso), nessa corda bamba que liga a realidade à ficção.
Ora, não existe fenômeno ao mesmo tempo mais fictício e mais real do que o amor: tudo depende da maneira como se observam as coisas, como se interpreta um olhar, como se fala uma palavra (no caso, "salam" é uma expressão extremamente significativa).
Ou, retificando, o outro fenômeno em que o real e a ficção se tocam de forma tão exasperada é o cinema. Nele nós vemos as coisas. E o que vemos –a imagem– é percebido como prova de verdade. Sabemos, no entanto, que não é. E "Através das Oliveiras" deixa isso muito claro quando, em determinado momento, o diretor do filme repete nada menos do que cinco vezes a mesma cena.
Esse corpo-a-corpo entre idéia e matéria, verdade e mentira, cinema e realidade funciona como uma espécie de coração do filme, a partir do qual se projetam as outras idéias que ocupam cada imagem, cada fotograma deste filme.
O certo é que Kiarostami tem a estatura desses cineastas. Não é um desses fenômenos que aparecem de tempos em tempos, beneficia-se da complacência reservada a culturas desconhecidas e depois some de mansinho. "Através das Oliveiras" é para ser visto como cinema, alto cinema. É para ser lembrado, também: dificilmente outro filme tão importante será exibido em 1995.

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