São Paulo, sexta-feira, 20 de janeiro de 1995
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O Triângulo das Bermudas

FREI BETTO

A Câmara dos Deputados aprovou, por 253 votos a 110, a anistia ao presidente do Congresso, o senador Humberto Lucena (PMDB-PB), que usou a gráfica do Senado –um serviço público, mantido pelo bolso do contribuinte– em proveito próprio.
O Supremo Tribunal Federal, que absolveu o ex-presidente Collor, havia condenado e cassado Lucena. Parece o jogo dos coelhos em parque de diversões. Quem não encontra a porta da impunidade pelo Judiciário, tem a chance de atravessá-la pelo Legislativo ou, em último caso, pela sanção do Executivo.
Enquanto ladrões de galinha são presos, espancados e trancafiados, homens públicos se locupletam com os recursos da nação, protegidos pelo "seguro cumplicidade política", graças ao qual os corruptos agem impunes e imunes, confiantes de que aquele terreno de ação entre amigos chamado Brasília haverá de ser condescendente com seus crimes.
Executivo, Legislativo e Judiciário seriam o Triângulo das Bermudas onde naufragam os nossos sonhos de conquista de cidadania e consolidação da democracia se não fossem as exceções à regra: juízes que não votam contra o senso ético de indignação nacional nem compram apartamentos barateados por favores do tráfico de influências; senadores e deputados que não utilizam os recursos da nação em benefício próprio; membros do Executivo que não vendem a dignidade por um prato de lentilhas dessa fama tão fugaz e dúbia chamada poder político.
Na falta do rigor da lei –o que torna imperativo a reforma da Constituição–, pequenos homens tripudiam sobre essa grande nação. Somos a décima economia do planeta, o sexto produtor mundial de alimentos e o primeiro de frutas. Merecemos da natureza e da geopolítica um território de dimensões continentais desprovido de catástrofes naturais ou obstáculos à produção, como neve, vulcões, montanhas inabitáveis, terremotos, furacões etc., tão frequentes em outros países.
Para ser o paraíso, só falta ao Brasil um detalhe: homens públicos à altura da grandiosidade deste país de milhões de trabalhadores, de jovens que sonham, de mulheres que lutam por seus direitos, de artistas que fomentam utopias. É a falta de governo voltado à maioria que explica tanta riqueza natural cercada pela afronta da coletiva miséria humana.
A cumplicidade no Triângulo das Bermudas torna a política, para muitos, uma coisa menor, não pública, mas privada, no duplo sentido do termo, onde uma carreira se edifica sobre sorrisos falsos, tapinhas nas costas, telefonemas melífluos, troca de presentes e favores, puxa-saquismo declarado, festas que fazem a fortuna de contrabandistas, desvios de verbas, lobbies em autarquias e o repasse das gordas migalhas que caem da mesa farta e superfaturada das empreiteiras.
O senador Humberto Lucena foi anistiado do mesmo modo como a Lei Fleury foi criada para impedir que o chefe do Esquadrão da Morte fosse parar na cadeia por seus crimes, ou como os torturadores entraram de viés na Lei da Anistia aprovada no crepúsculo da ditadura.
Para completar o festim dos eleitos, os deputados federais elevaram seus próprios salários a somas astronômicas. Um deputado federal custa, agora, ao bolso do contribuinte, cerca de R$ 24 mil por mês.
Para completar a farsa e demonstrar que tudo continua como dantes no quartel de Abrantes, só falta o presidente Fernando Henrique Cardoso vetar o aumento do salário mínimo para R$ 100 e sancionar a anistia a Lucena.

CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO (FREI BETTO), 50, frade dominicano e escritor, é membro da Fundação Sueca de Direitos Humanos e autor de "Batismo de Sangue" e "Cartas da Prisão".

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