São Paulo, sexta-feira, 20 de janeiro de 1995
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Desvio de Poder Legislativo

CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO

Ao aprovar anistia de deputados e senadores que se utilizaram de verbas públicas para sua campanha eleitoral ou interesse puramente pessoal, o Congresso Nacional praticou um ato inválido, nulo.
Sabem as pessoas formadas em direito que existe uma modalidade de ilicitude muito conhecida denominada "desvio de poder". Ela consiste na utilização de um "poder", isto é, de uma competência detida por alguma autoridade pública, para atingir uma finalidade jurídica diferente daquela em vista da qual foi concebida tal competência.
Em suma: alguém possui atribuições previstas para dar bom atendimento a um dado interesse prestigiado pelo direito; sem embargo, vale-se delas a fim de atingir um outro resultado, distinto, isto é, diverso, daquele que correspondia à competência utilizada. Nem mesmo importa se o resultado buscado é lícito ou justo, como bem acentuou Seabra Fagundes. Basta que não seja o alcançável por aquela competência.
O vício de desvio de poder é causa de nulidade do ato praticado, sendo considerado um dos mais graves em que uma autoridade pode incorrer. Através dele, sob o capuz da legalidade, embuçado nela, pratica-se uma traição à lei (ou à Constituição, conforme o caso).
Daí a observação de Caio Tácito: "A ilegalidade mais grave é a que se oculta sob aparência da legitimidade. A violação maliciosa encobre os abusos de direito com a capa de virtual pureza". É que, em tais casos, o ato aparentemente atende à legitimidade, pois quem o pratica está a valer-se de poderes que "abstratamente" possui. Só não os tem para fazer o uso que deles fez.
Não é, pois, uma hipótese em que o sujeito ostensivamente descumpre uma lei, viola uma disposição normativa e, dessarte, se expõe, de peito aberto, às consequências do que fez. Não. Pelo contrário.
Trata-se de um caso em que o agente procede se escondendo atrás da lei, age "mascarado" por ela. Quando, embora consciente do vício, atua desvirtuando a finalidade da norma de direito, propõe-se a iludir os cidadãos. Usa, para fins indevidos, poderes que pode ostentar, mas que lhe foram outorgados unicamente para que cuide dos assuntos da coletividade e não de interesses menores.
Em situações desta ordem, o ato praticado é –como o dissemos em obra teórica– um sepulcro caiado, pois só se lhe reconhece o verdadeiro caráter ao desvendar-lhe a intimidade.
Tanto pode existir desvio de poder em atos administrativos –e o primeiro caso de fulminação de um destes ocorreu em 1864, em acórdão do Conselho de Estado francês, no aresto Lesbasts– quanto em relação a atos legislativos e jurisdicionais.
É que, em rigor jurídico, os exercentes de cargos públicos, políticos ou não, mais do que detentores de poderes, são meros cumpridores de deveres: os de bem conduzir os assuntos públicos.
Na verdade, estão investidos em "deveres-poderes", pois os poderes que lhes são outorgados têm natureza simplesmente instrumental; são apenas meios indispensáveis para poderem bem cumprir as obrigações que lhe são afetas, visto que, nos termos da Constituição: "Todo o poder emana do povo".
Segue-se que os poderes atribuídos a autoridades públicas lhes são confiados unicamente para atenderem às finalidades em vista das quais os receberam do povo. Logo, se o Legislativo ou o Judiciário usam de tais poderes para fins diversos daqueles que constitucionalmente lhe servem de justificativa, burlando a Constituição ou a lei, estão incorrendo em "desvio de poder".
O "poder" de anistiar que assiste ao Congresso (art. 48, VIII, da Constituição) obviamente não foi previsto na Lei Magna para que congressistas se livrem de sanções judiciais. Isto é: a anistia não foi suposta para ser utilizada em proveito próprio e com a finalidade de elidir sanções judiciais que atingiriam congressistas por terem violado a ordem jurídica.
Note-se, de resto, que o uso de recursos públicos para fins pessoais, além de ser, como era no caso, ilícito sancionável pela Justiça Eleitoral, configura também hipótese prevista na lei nº 8.429, de 2/06/92, como ato de "improbidade administrativa que importa enriquecimento ilícito" (art. 9º, inciso, IV e XII).
Para ato desta natureza as sanções previstas pela citada lei são da mais extrema severidade, a saber: "Perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver; perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito até dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos" (art. 12, I).
Finalmente, diga-se que a hipótese de desvio de poder em ato legislativo não está aqui sendo apresentada como uma inovação concebida "ad hoc", apenas diante do impacto da repreensível medida tomada pelo Congresso.
Em obra teórica ("Discricionariedade Administrativa e Controle Jurisdicional"), no capítulo sobre desvio de poder, abrimos um título especificamente para o desvio de poder em atos legislativos e jurisdicionais.
Quanto aos primeiros, exemplificamos com a hipótese de lei que extinguisse cargos públicos com a finalidade de burlar decisão judicial que neles reintegrasse anteriores ocupantes. Uma vez que existe no Brasil o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis –por via direta (ação direta de inconstitucionalidade) ou no curso de alguma lide–, seria cabível fulminar judicialmente o efeito danoso de leis incursas em desvio de poder.
De resto, Caio Tácito, em artigo recente sobre o desvio de poder em atos administrativos, legislativos e jurisdicionais, publicado na "Revista de Direito Administrativo", nº 188 (abril-junho de 92), também abordou o tema –e com a proficiência habitual.
Sem embargo, certamente não será necessária providência judicial alguma para anular a anistia em apreço. A matéria irá à sanção do presidente da República e, uma vez que é dever do chefe do Poder Executivo vetar leis inconstitucionais (art. 66, parágrafo 1º), este certamente o fará, demonstrando que novos costumes políticos estão por se impor. Afinal, para isso foi eleito.

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