São Paulo, quarta-feira, 25 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Kiarostami evita ciladas da metalinguagem

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não é sempre que podemos topar com um filme iraniano nos cinemas da cidade. "Através das Oliveiras", de Abbas Kiarostami, põe o espectador numa atitude que oscila entre a curiosidade e a preguiça. "Pode ser interessante... mas será que tenho paciência para assistir a um filme iraniano?"
"Através das Oliveiras" corresponde, de certo modo, a esta dupla expectativa. É ao mesmo tempo um filme cansativo e interessantíssimo. A narrativa flui com clareza, mas sem as reviravoltas, a turbulência fatual, a riqueza de emoções que o cinema americano sabe agenciar com sua diabólica tecnologia de roteiro.
Mas tampouco estamos diante da lentidão discursiva, da pseudoprofundidade psicológica que estragam tantos filmes europeus, excessivamente preocupados com o lado "artístico" e que terminam sem saber se foram obras de arte ou cinema trivial.
Um amigo, aliás, reclama com razão dos finais de filme francês: são decepcionantes, artificialmente infelizes. A explicação pode ser a seguinte: o diretor, o roteirista estão fazendo um filme comercial, mas sentem vergonha. O filme inteiro hesita entre ser comercial e artístico. Quando a ação se encaminha para o fim, os realizadores do filme sentem o dever de "enobrecer" o que fizeram e inventam um desfecho anticlimático, como se dissessem: "Não, não nos rendemos às convenções de Hollywood".
A vantagem de "Através das Oliveiras" é que, sendo iraniano, está longe desses dilemas europeus. E, claro, está longe do cinema americano.
Abbas Kiarostami conta a rodagem de um filme numa zona rural a mais de 30 quilômetros de Teerã. Mostra as dificuldades da equipe de produção com os habitantes do local. Se fazer um filme é sempre difícil, imagine-se isso nos cafundós do Irã.
Trata-se, assim, de um "metacinema", de um filme que mostra como se faz um filme.
Seria errado ver "Através das Oliveiras" como mais um exercício metalinguístico –a falsa originalidade, tantas vezes repetida desde Fellini e Truffaut, que há em "denunciar" a falsidade do cinema, de focar as atenções do público no "cinema sobre o cinema", no "discurso sobre o próprio discurso".
Duas banalidades, a meu ver, consistem na doença intelectual de nossa época: a metalinguagem e o relativismo cultural.
Muitas pessoas se julgam inteligentes quando dizem: "Ah, determinado filme é na verdade uma investigação sobre o próprio cinema". "Tal poeta, em tal poema, está escrevendo sobre o próprio ato de escrever um poema". Como se isso fosse prova de genialidade.
Há, também, automático, o empenho em relativizar tudo. Determinada peça de teatro é ruim. "Não... na época em que foi escrita, era uma coisa genial". Muçulmanos oprimem as mulheres. "Não... na cultura deles, isso é válido."
Sinto vontade de sacar o revólver cada vez que se fala em "metalinguagem" e em "cultura" –quando esses termos funcionam como álibi para a falta de conteúdo e para justificar uma opressão da qual não somos vítimas.
Metalinguagem e cultura são, entretanto, as palavras básicas do filme de Kiarostami. Mostra-se a dificuldade de um diretor de cinema em usar camponeses do Irã como atores no filme que ele quer fazer.
Teimosia total. Costumes rígidos. Uma cena tem de ser refilmada várias vezes, já que os habitantes da localidade não distinguem entre o que é "fingimento" de ator e o que é a realidade de suas próprias vidas. Não querem dizer as mentiras imaginadas pelo roteiro, uma vez que estas discrepam de sua experiência real.
Assistimos, assim, à tentativa de filmar uma cena várias vezes, com os atores prejudicando sempre as intenções do diretor, recusando-se a seguir suas instruções, à medida que as falas do roteiro ferem as convenções da cultura local.
É claro que isso torna "Através das Oliveiras" um filme cansativo. Compartilhamos do esforço de paciência que foi exigido dos realizadores do filme, às voltas com camponeses teimosos, aferrados à tradição.
"Através das Oliveiras" só superficialmente pode ser entendido como um exercício de "metalinguagem", de "filme dentro de um filme". O que está em jogo, o tempo todo, é o contraste entre tradicionalismo e modernização.
A equipe de cinema age como um fator "modernizador" naquela comunidade iraniana. Choca-se com a persistência de valores tradicionais. A teimosia das camponesas quase que torna impossível a realização do filme que se queria fazer.
Enquanto isso, desenvolve-se uma bela história de amor. Uma moça e um rapaz, da comunidade local, são escolhidos para fazer o papel de marido e mulher no filme. Só que na vida real, no mundo das tradições do lugar, os dois não podem se casar. Acompanhamos então as desventuras do rapaz, ator improvisado, tentando conquistar a moça –que, obediente às convenções, não dá bola. As ordens do diretor do filme, sempre desobedecidas, ajudam contudo a aproximação entre o rapaz e a moça.
Encena-se, então, um conflito clássico: o amor de dois jovens contra as convenções da tribo. Fico pensando se toda boa história de amor –a começar por "Romeu e Julieta"– não depende de um pano de fundo repressivo, de uma convenção social que impeça sua realização.
O amor se exalta na ordem repressiva. O interdito sexual ganha idealidade, espírito, paixão, à medida que representa uma revolta contra a sociedade: substituição, talvez, do tabu edipiano. A mulher ideal é aquela proibida –e, se a proibição não se volta apenas contra a mãe, mas contra uma "outra" igualmente inacessível, é claro que o amor se intensifica.
Acho que este é o real assunto de "Através das Oliveiras": o bom não é tradição islâmica, nem a modernidade liberal em que nós, ocidentais, vivemos. O bom é a ruptura com a tradição. O filme tem, a meu ver, final feliz, numa linda e longa sequência de perseguição com o rapaz e a moça correndo pelo mato. Não mostra explicitamente, mas sugere, que as convenções familiares foram vencidas.
E, a despeito de todo "relativismo cultural", entendemos o que se passa: amor, felicidade, afeição; vergonha e culpa, opressão e liberdade, contentamento e decepção são termos capazes de tradução em qualquer língua.
Não por acaso, entram em moda filmes "antropológicos", que descrevem costumes estranhos, como os chineses e agora este filme iraniano. O fascínio antropológico existe, pelo que nos instrui a respeito de costumes estrangeiros. Outro fascínio, mais puro, mais romântico talvez, nos comove: o da universalidade das emoções, dos amores, das liberdades triunfantes, dos ímpetos e persistências amorosas que assegura, para alegria do espectador cansado e curioso, o benefício de um final feliz.

Texto Anterior: Série dos EUA busca segredos do cinema
Próximo Texto: 'Morango e Chocolate' competirá nos EUA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.