São Paulo, sábado, 28 de janeiro de 1995
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Morreu o irado Nelson Rodrigues inglês

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Morreu outro dia (sua vida transcorreu do Natal de 1929 ao de 1994) John Osborne, o Nelson Rodrigues do teatro inglês. A revolucionária peça fundamental de Osborne, "Look Back in Anger", foi de 1956, quando "Vestido de Noiva", a peça básica de Nelson, foi de 1943.
Osborne nunca ouviu falar em Nelson na vida e Nelson não parece ter tomado conhecimento da existência de Osborne, ou terá sabido dela quando "Look Back" foi representada no Rio com Jardel Filho no papel principal. No índice onomástico de "O Anjo Pornográfico", de Ruy Castro, não vejo o nome de Osborne e também não me recordo de crônica do Nelson que mencione o dramaturgo inglês.
Na realidade a única semelhança entre os dois reside no mencionado fato de que revolucionaram o teatro de seus respectivos países. As revoluções foram diferentes, pois os dois países são diferentíssimos. Nelson mergulhou numa história nacional não inteiramente estagnada, mas quase, pois só se movera, muito pouco, desde que o Brasil abriu seus portos ao resto do mundo, em 1808.
Aliás, ao resto do mundo é um eufemismo: à Inglaterra, que dominava os mares e para o Brasil trouxe em 1808, como um régio bombom, o regente português que nos desaferrolhou os portos para as mercadorias inglesas.
A revolução teatral de Nelson foi introspectiva, uma dramática forma de explicar a si mesmo e a nós também as razões do nosso imobilismo. A de Osborne foi uma revolução enfurecida contra uma Inglaterra que não dominava mais os mares nem abria mais os portos que lhe desse vontade de abrir. A Inglaterra ainda saíra vencedora da Segunda Guerra Mundial, mas empobrecida, transformada em nação de segunda classe, econômica e militarmente.
Nelson era filho de uma família da típica classe média brasileira, de bacharéis e sinhazinhas. Osborne vinha de um pai que era vago artista comercial e uma mãe, que ele detestava, garçonete de botequim. Lutou muito para se educar, num país ultra-exigente em termos de como se fala a língua e como se segura a alça da chávena de chá.
"Look Back" e "The Entertainer", a peça seguinte de Osborne, foram revolucionárias porque tiraram o teatro inglês dos seus bons modos, quando mesmo tragédias tinham seu momento de tênis e de cálices de xerez. Osborne invadiu o palco com a peça do sacolejão, da denúncia social e das hipocrisias familiares, com um sarcasmo hilariante, mas de alta violência.
Jimmy Porter, o herói de "Look Back", entra de chicote na sala de visita do país e do seu teatro. E em "The Entertainer" o herói, um decadente ator de music-hall (levado ao palco por ninguém menos que Lawrence Olivier), parecia caricaturar o país: em lugar de um Henrique 5º conquistador da França, nos punha diante de um Oscarito ou Cantinflas.
É curioso registrar que Osborne fez tanto sucesso em 1956 quanto Nelson fizera em 1943, mas não manteve sobre o público inglês o fascínio que Nelson exerce sobre nós até hoje. O teatro inglês é espaçoso, opulento e variado, e seu público o mais sofisticado do planeta. No entanto, um estudo comparativo entre os dois autores seria, acho eu, dos mais fecundos.
Ambos tinham fortíssima personalidade e o mais solene desprezo pela crítica hostil. (Da outra crítica todo mundo gosta). Do ponto de vista biográfico, foram ambos notáveis consumidores de mulheres. Osborne casou-se cinco vezes e parece que não tratou muito bem nenhuma das mulheres. Espero que ele tenha sido pelo menos razoável com a atriz Mary Ure, que vi exatamente quando ela criou a figura feminina de "Look Back". Merecia todas as atenções e ternuras possíveis.
Outra atriz que com ele se casou, Jill Bennett, sofreu o diabo, acabou se matando e nem sequer mereceu de Osborne uma palavra de compaixão. Nelson Rodrigues ficaria tão horrorizado ao saber de uma coisa assim que provavelmente escreveria uma peça. Contra Osborne.
Se alguém quiser ter uma idéia do que foi o estouro da estréia de "Look Back" deve ler a crítica que a respeito escreveu Kenneth Tynan. Rico de tudo, o teatro inglês parece ter sempre grandes críticos de plantão e Tynan terá sido o maior de todos neste século. Pois leiam no seu livro "Curtains" o que ele escreveu sobre o lançamento da primeira peça de Osborne.
Na mesma temporada de 1956, em dois teatros de Londres representavam-se duas peças, das quais se ocupa Tynan em crônicas consecutivas: uma era a do então desconhecido John Osborne e a outra do mais famoso poeta inglês do nosso tempo, T.S. Eliot. A de Eliot, "The Family Reunion", fazia parte do grupo de peças, em versos brancos, com que o poeta queria reintroduzir a poesia no palco inglês.
Tynan vai fundo contra o "greguismo", que era o que Eliot de fato queria trazer de novo ao palco. E mostra como nisto Eliot falhou. Suas peças só têm a branca solenidade sem paixão de um boneco de neve: acabam por derreter-se no palco diante de nós. Quanto a "Look Back", o irônico e exigente Tynan corta as suas amarras e desfralda a bandeira da crítica emocionada.
Basta assinalar que, para contradizer os que achavam o herói da peça um mero e endiabrado cãozinho, a ladrar em cena, Tynan finge concordar, mas para acrescentar que, com seu horror ao que é falso, sua rude franqueza e até seu amor ao monólogo, "Jimmy Porter é o mais completo cãozinho de nossa literatura desde Hamlet, príncipe da Dinamarca". E aqui, na minha derradeira linha, lamento informar que esta coluna só não bastou e que semana que vem ainda tenho alguma coisa a dizer sobre Nelson Rodrigues e John Osborne.

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