São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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Em defesa do Congresso

MARCELO LEITE

Desconfio de qualquer consenso, em especial quando é contra. Ajo assim por dever de ofício, e não porque Nélson Rodrigues disse com sabedoria ambígua que a unanimidade é burra. Todo jornal deve entrar em alerta quando sua voz se dilui num coro, de contentes ou descontentes.
Na berlinda está o Congresso Nacional. Por seus próprios deméritos, atinge o ponto mais baixo de prestígio desde a pseudo-reabilitação do Collorgate.
Anistia ao cassado Humberto Lucena, salários caleidoscópicos, chantagem com Pérsio Arida. Não é preciso a imprensa mover campanha para piorar-lhe a reputação. Não é possível piorá-la.
Recebo dezenas de cartas e ligações de leitores sinceramente indignados com "os políticos". Meu incômodo inicial com esse coletivo indeterminado não chega porém a suplantar o impulso solidário, movido pelo reflexo moralista de quase todo jornalista.
Nada mais fácil do que falar mal dos parlamentares. Está na boca de todos, do motorista de praça aos locutores de telejornais –sejam eles arautos sanguíneos da vergonha nacional ou fleumáticos repetidores do diário oficial pós-moderno conhecido como "Jornal Nacional". Estar contra "essa corja" é estar do lado do "povo", exalando bile.
No entanto, há muitas razões para não crucificar o Congresso. Não vou cuidar aqui dos lugares-comuns, como afirmar que o Parlamento é um espelho da sociedade, que fomos "nós" que o elegemos, que é preciso separar o joio do trigo. Disso se encarregarão jornalistas com maior senso de oportunidade, capazes de intuir o momento exato para passar a contradizer o vulgo e assim prosseguir chamando a atenção.
O motivo que me interessa é o que compete a um ombudsman: malhar o Congresso, só, equivale a mau jornalismo.
Informar é anunciar o novo, publicar o inédito, revelar o que se desconhece. Quando tudo se resume a confirmar um preconceito, por justificado que seja, o jornal se afasta de sua função, perde-se no pântano da imprecisão. Acredita estar formando o público, quando só faz desinformá-lo.
Os jornais contribuem, intencionalmente ou não, para erigir o Congresso em bode expiatório do "atraso" (outra categoria-ônibus que nada explica). É uma tremenda simplificação. Como todas, um erro.
Já quase acostumado ao papel de advogado do diabo, tomo como exemplo os salários recém-aumentados dos parlamentares. É um caso particularmente vil de legislação em causa própria. E também um tema propício para reações transbordantes, neste país de miseráveis em que trabalhadores devem dar-se por satisfeitos quando alcançam um salário de fome.
Em sintonia com esses sentimentos regressivos da massa (inveja, ressentimento), a Folha caprichou em títulos talhados para amplificá-los, projetando a real amplitude da sordidez: "Deputados vão poder ganhar até 19 salários" (chamada de Primeira Página na edição de 18 de janeiro).
Até aí, tudo bem. Não cabe mesmo ao jornal dourar a pílula. Se os deputados cometeram essa cretinice, só resta divulgá-la. Mas naquele dia observei em meu comentário da edição:
"Não que eles não mereçam, mas os deputados vão sair de novo como os únicos vilões da história do aumento. Ocorre que o Planalto participou diretamente das negociações, ministros vão receber o mesmo que parlamentares e é o governo que está regateando reajuste previsto em lei de 22% para os servidores públicos, ao mesmo tempo em que aumenta 140% os ganhos do primeiro escalão. Nada disso encontra eco na chamada".
Ao noticiar somente aquilo que o leitor já contava ouvir (pau neles!), o jornal deixou passar a oportunidade de mostrar didaticamente a espúria comunidade de interesses e conveniências que enlaça Executivo e Legislativo. Foi somente fora do noticiário, na coluna Janio de Freitas, que a tendência massacrante foi contrabalançada com cálculos e informações de outros países.
Seguindo essa trilha, muitos dias depois o jornal prestou informações que deveriam ter vindo a público quando as emoções cívicas ainda ferviam. Refiro-me à reportagem "Reajuste cria despesa de R$ 121 milhões", na pág. 1-8 de anteontem (e que na edição Nacional da Folha saiu na pág. 1-5).
Uma idéia simples: comparar os gastos adicionais impostos pelos quatro aumentos que se misturavam no caldeirão da indignação pública. A saber: parlamentares; primeiro e segundo escalões do Executivo; IPC-r para funcionários públicos; impacto do salário mínimo de R$ 100 sobre a Previdência. Os valores, respectivamente: R$ 40 milhões; R$ 35,1 milhões; R$ 5 bilhões; R$ 5,2 bilhões.
Repare o leitor só no "vírgula dois" deste último número (Previdência). São R$ 200 milhões. Dá para pagar dois aumentos para o Executivo e mais dois para o Legislativo. Ou seja, são problemas incomparáveis, incomensuráveis.
Outra lição a tirar dos números é a de que as cifras envolvidas nas benesses para os dois Poderes estão muito próximas. Por que, então, ferrar preferencialmente o Congresso?
Um arrimo tradicional para os que se comprazem em arremessar pedras contra o telhado de vidro do Parlamento é a baixa assiduidade de seus membros, em se tratando de sessões plenárias. Um fato tão inegável quanto escandaloso, reconheça-se, mas por isso mesmo um tipo de munição que produz mais calor do que luz.
Tal simplificação esteve na raiz da primeira polêmica deste ombudsmanato, a propósito do operoso caderno "Olho no Voto", que acabou por desencadear uma troca de farpas com a Sucursal de Brasília. O final foi feliz, com a realização na última quinta-feira de um debate no auditório do jornal sobre critérios mais justos e eficientes para avaliação do trabalho parlamentar.
O resultado do debate poderá ser conferido pelo leitor ainda esta semana, com a publicação de reportagem sobre o tema no caderno Brasil.
Ainda que sem relacionar diretamente uma coisa com a outra, o jornal teve a competência de mostrar, domingo passado, o outro lado da moeda em que todos teimam ver unicamente parlamentares gazeteiros. Refiro-me à reportagem destacada no capa da Folha com o título "Presidente faz mais leis que o Legislativo".
Em outras palavras, o absenteísmo congressual vem bem a calhar para um Executivo que já se apega à comodidade de governar o país por medidas provisórias (MPs), seguindo os passos duvidosos de Fernando Collor (160 MPs) e Itamar Franco (505 MPs). Não é também uma forma de legislar em causa própria? Em todo o caso, uma usurpação da função legislativa, do mesmo modo como faziam os militares que perseguiam e prendiam os tucanos que agora detêm o mando (falo dos que não vieram da Arena, claro).
Afirmo isso não para comprovar uma platitude (o mundo dá voltas...). Faço-o com a intenção de repisar que o apedrejamento do Congresso pode começar com indignação com as faltas objetivas dessa instituição e terminar aplacando um apetite irracional por retaliação. O que certamente não contribuirá para civilizar os costumes políticos do país, uma vez que se reduz a ancestral crise do Estado –o verdadeiro cancro por combater– à falta de vergonha de meio milhar de "políticos".
Como a adúltera abatida por projéteis fundamentalistas, o Congresso pode tornar-se o símbolo de uma forma regressiva e bárbara de punição, que depõe mais contra quem dela lança mão e quem a tudo assiste sem reagir.

Na coluna de domingo passado, deixei no ar a idéia de que a lista dos votos de deputados em relação à anistia de Humberto Lucena não tinha sido publicada na edição Nacional da Folha. Foi, ainda que um dia depois da edição São Paulo. Mais precisamente, na sexta-feira, 20 de janeiro, à pág. 1-4.

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