São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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É preciso evitar que sonhos virem pesadelos

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O ex-presidente Collor de Mello deve estar exultante em suas férias forçadas no exterior. Depois da sua absolvição, pelo Supremo Tribunal Federal, da acusação de ter praticado crime de corrupção, o ministro da Secretaria de Administração Federal e da Reforma do Estado dá-lhe um atestado ético hiperbólico.
O ministro da Administração disse, a propósito da regulamentação baixada no governo Collor determinando que apenas o presidente da República, vice-presidente e ministros de Estados poderiam ter carros oficiais de representação, que "isso teria sido um excesso de moralismo do governo Collor".
Nada mal, para quem foi posto para fora da Presidência da República por falta de moralidade e que está purgando um exílio político, a obtenção de um elogio do Executivo Federal à sua opção moralizadora na área das mordomias.
O decreto nº 1.375, de 18 deste mês, acrescenta à lista dos agraciados com a utilização de carros oficiais de representação os titulares dos órgãos essenciais da Presidência da República.
Criou, ainda, uma nova categoria de veículos de serviço: os destinados ao transporte pessoal, quando em serviço, dos titulares dos cargos de natureza especial, de direção e assessoramento superiores DAS-6 e dos chefes de gabinete de ministro de Estado e titulares de órgãos essenciais da Presidência da República.
Tal medida implica que se ponham cerca de 160 veículos à disposição dos novos contemplados. É contraditório que um governo que realiza cortes drásticos no Orçamento e que postura níveis elevados na condução da coisa pública restabeleça um privilégio que já estava sepultado na cultura burocrática do Executivo Federal, acarretando gastos vultosos para sua implantação. Seguramente, há alternativas socialmente mais justas para aplicação destes recursos.
O pior de tudo é o mal exemplo dado à população. Um dos mais nefandos símbolos da arrogância e prepotência das autoridades no abuso da coisa pública foi, sem dúvida, o carro preto oficial carregando filhos, a esposa, a sogra e, por vezes, a amante da autoridade.
Veículos oficiais parados diante de bares, restaurantes e boates, durante a madrugada, constituíram modelo de insensibilidade da alta burocracia. Daí, o justo repúdio da população ao carro oficial.
O democrático e didático é que as autoridades cheguem aos palácios e repartições nos seus carros particulares, nos táxis ou nos ônibus. Se houver necessidade de deslocamento, por exercício de suas funções, o adequado é a utilização do carro de serviço.
Realmente, nos grandes centros urbanos, perde-se tempo procurando-se vaga para estacionar. Por isso, é útil dispor-se de veículo oficial, com motorista, o que facilita a mobilidade do servidor, visto que o problema de estacionamento fica a cargo do motorista.
Entretanto, para isso, não é necessário carro oficial individual e privativo. Basta a utilização temporária de um dos veículos da frota existente em cada ministério.
É triste verificar que um governo, no qual se depositaram tantas esperanças de mudanças para melhor, promova um retorno ao passado, no que tem de condenável, pior e anacrônico, logo em seus primeiros instantes de atuação.
Esperava-se, sim, que o governo iniciasse sua gestão com realizações positivas, correspondendo às expectativas otimistas da população. Mas não que dê prioridade a privilégios ou, vá lá, coisas que possam parecer privilégio para a população.
Pode-se afirmar, para contestar a minha abordagem, que essa mordomia é um pormenor insignificante no global do governo. É aí que a coisa pega. Administrar é cuidar do detalhe. Todo detalhe é importante na administração. A soma e a interação das pequenas coisas do dia-a-dia é que vão produzir um determinado produto.
A concepção tecnocrática-brasileira há muito tempo acostumou-se ao pensamento e realizações grandiosos. A sua concepção é macroscópica. Os pormenores são desdenhados.
O desafio da continuidade com êxito do Plano Real obriga que se cuide, cada vez mais, de cada detalhe de execução. O plano de estabilização foi essencialmente de natureza normativa: uma profusão de medidas provisórias, portarias, instruções. Há alguns meses passou-se a depender, mais do que nunca, da execução. Agora é a vez da relevância do detalhe e da sintonia fina.
Algumas debilidades de execução não mais podem ocorrer. Exemplo: a estimativa oficial, ridícula, do déficit da balança comercial em dezembro do ano passado, de US$ 47 milhões, quando de fato tinha superado US$ 800 milhões.
Qualquer funcionário da ECT ou dos portos e aeroportos, dado o volume de importações que passaram sob seus olhares, consultados, opinariam que as importações tinham crescido assustadoramente. Jamais dariam um palpite tão distante da realidade.
Mas que órgão fez essa estimativa tão desastrada? A Secretaria do Comércio exterior (Secex), do Ministério da Indústria, Comércio e Turismo, sucessora da Cacex no controle do comércio exterior do país. Dificilmente ter-se-ia órgão tão despreparado para atuar em área tão estratégica.
É necessário que o governo desloque a sua ênfase reformista para a área do comércio exterior. Volte a prestigiar as exportações, abandone o privilegiamento das importações de quinquilharias, em detrimento da indústria brasileira.
Há lições a serem extraídas da crise mexicana. O seu modelo, que já foi exemplo a ser seguido, deve servir para evitar os mesmos erros lá praticados.
Cumpre, portanto, unificar em um só ministério, no caso, o da Fazenda, os órgãos mais estratégicos do comércio exterior. E deixar de adotar medidas de perfumaria ou epidérmicas.
O problema central das importações atualmente é a sua base de cálculo, subfaturada. Reduzir alíquotas do Imposto de Importação, como tem sido feito, quando os preços praticados nas importações são subfaturados, é golpear de morte a indústria nacional, por ocorrência de total desproteção aduaneira.
É necessário instalar na Secretaria da Receita Federal a já criada Coordenação de Valoração Aduaneira, para efetivo controle dos preços praticados no comércio exterior.
Nessa linha, é imprescindível aperfeiçoar-se o disciplinamento do dumping e dos direitos compensatórios, estabelecido por medida provisória, que não fixa os critérios para sua determinação e não estabelece procedimento investigatório e contencioso eficaz para a sua apuração.
Não é mais hora dos nefelibatas e dos sonhos que se tornam pesadelos. A vez, a necessidade, a urgência, é dos que têm os pés no chão. Pés no chão na defesa dos interesses brasileiros.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 55, é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade de Brasília, advogado e ex-secretário a Receita Federal.

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