São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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As duas mortes de Ramon Mercader

LUIZ GONZAGA BELLUZZO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em menos de duas décadas os principais países da América Latina sofreram ou estão prestes a sofrer a segunda crise de financiamento externo. Em ambas as ocasiões –em 1982 e agora– foram acentuadas as responsabilidades das políticas domésticas na eclosão dos desequilíbrios externos.
Mas o fato é que os dois episódios só podem ser entendidos corretamente a partir de uma apreciação cuidadosa dos movimentos de internacionalização financeira gestados pela desorganização do sistema monetário e de pagamentos criados em Bretton Woods, no final da 2ª Guerra Mundial.
No crepúsculo dos anos 60, a inefetividade progressiva do sistema de regulação de Bretton Woods recebeu uma contribuição decisiva com o surgimento de operações de empréstimos/depósitos que escapavam do controle dos bancos centrais.
A fonte inicial dessas operações "internacionalizadas" foi certamente os dólares que brotavam dos crescentes déficits do balanço americano e excediam a demanda dos agentes econômicos e das autoridades monetárias estrangeiras.
Depois do primeiro "choque do petróleo", em 1973, circuito financeiro internacionalizado e operado pelos grandes bancos comerciais –à margem de qualquer regulamentação ou supervisão dos bancos centrais– acentuou sua tendência à superexpansão do crédito concedido.
Passou a funcionar como um sistema de "crédito puro" em suas relações com governos e empresas, com criação endógena de liquidez e altos prêmios de risco. Os agentes endividados, por sua vez, aceitavam qualquer taxa de juros para a rolagem e ampliação de suas dívidas.
Essa etapa da internacionalização financeira culminou com a crescente supremacia da função de meio de financiamento e de pagamento do dólar à custa de sua função de standard universal.
O conflito entre as duas funções, que está na raiz das crises monetárias, chegou a suscitar ensaios da substituição do dólar por Direitos Especiais de Saque Ativos, emitidos pelo Fundo Monetário Internacional e lastreados em uma "cesta de moedas".
Ao tentar impor a regeneração do papel do dólar como standard universal, através de uma elevação sem precedentes das taxas de juros, em 1979, os Estados Unidos, além de lançarem os devedores aos cães, deram o derradeiro golpe no estado de convenções que sustentara a estabilidade relativa do pós-guerra.
Durante os anos 80, a economia mundial foi afetada por flutuações amplas nas taxas de câmbio das moedas que comandam as três zonas monetárias (dólar, iene e marco). Estas flutuações nas taxas de câmbio foram acompanhadas por uma extrema volatilidade das taxas de juros.
Na verdade, as flutuações das taxas de câmbio, supostamente destinadas a corrigir desequilíbrios do balanço de pagamentos e da maior autonomia às políticas domésticas, foram desestabilizadoras.
Isso porque a crescente mobilidade dos capitais de curto prazo obrigou a seguidas intervenções da política monetária, determinando fortes oscilações entre taxas de juros das diversas moedas e criando severas restrições à ação da política fiscal.
Foi nesse ambiente de instabilidade e esgarçamento do sistema monetário internacional que ocorreu "a grande fuga para a frente", consubstanciada no aparecimento dos novos processos de globalização, desregulamentação e securitização.
Ainda nos anos 80, a ampliação dos dois déficits –orçamentário e comercial– dos Estados Unidos foi um fator importante para dar um segundo impulso e uma nova direção ao processo de globalização financeira.
Na prática, a ampliação dos mercados de dívida pública constituíram a base sobre a qual se assentou o desenvolvimento do processo de securitização. Isto não apenas porque cresceu a participação dos títulos americanos na formação da riqueza financeira demandada pelos agentes privados americanos e de outros países, mas também porque os papéis do governo dos Estados Unidos são integrados.
A expansão da posição devedora líquida norte-americana permitiu o ajustamento, sem grandes traumas, das carteiras dos bancos, na medida que os créditos desvalorizados dos países em desenvolvimento foram sendo substituídos por dívida emitida pelo Tesouro Nacional dos Estados Unidos.
A evolução da crise do sistema de crédito internacionalizado e as respostas dos Estados Unidos ao enfraquecimento do papel do dólar criaram, portanto, as condições para o aparecimento de novas formas de intermediação financeira e para o desenvolvimento de uma segunda etapa da globalização.
Esse processo de transformações na esfera financeira pode ser entendido como a generalização e a supremacia dos mercados de capitais em substituição à dominância anterior do sistema de crédito comandado pelos bancos.
Esses "novos" mercados teriam a virtude de combinar as vantagens da melhor circulação da informação, da redução dos custos de transação e da distribuição mais racional do risco.
A teoria dos "mercados eficientes" pretendia, enfim, ensinar que todas as informações relevantes sobre os "fundamentais" da economia estão disponíveis em cada momento para os participantes do mercado.
E que, na ausência de intervenção dos governos, a ação racional dos agentes seria capaz de orientar a melhor distribuição dos recursos, entre os diferentes ativos, denominados em moedas distintas.
Na prática, o que se assistiu, mais uma vez, no caso do México e de outros mercados emergentes, foi o espetáculo do "erro persistente", expresso nas avaliações formuladas pelos mercados e pelas agências especializadas na classificação dos devedores.
O comportamento dos investidores correspondeu muito mais –tanto na entrada quanto na saída– ao que Keynes chamou de instinto de manada. A história se repete. Mas ainda são fracas as vozes que clamam pela reconstituição de uma verdadeira ordem econômica internacional.
Os fanáticos do livre mercado se recusam a compreender que ordem mercantil está seriamente ameaçada quando inexistem regras e instituições monetárias centralizadas capazes de garantir um mínimo de previsibilidade às decisões privadas.

(Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e ex-secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).

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