São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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Uma tragédia americana

CARLOS AUGUSTO CALIL
ESPECIAL PARA A FOLHA

O primeiro acorde da trilha sonora de Rastros de Ódio (1956), acompanhando os créditos iniciais deste notável filme de John Ford, já anuncia a intensidade do drama que vai se desenrolar. Como o famoso primeiro acorde em ré menor da abertura do "Don Giovanni" de Mozart, a música é grave, solene e principalmente anunciadora de um tempo difícil, onde irão se bater as forças antagônicas do instinto contra as da civilização.
A balada que rapidamente substitui a música composta por Max Steiner, se alivia a tensão criada, introduz pela sua letra singela o tema da obra: "What makes a man to wander? What makes a man to road?" Qual a natureza do tormento interior de Ethan Edwards, o oficial confederado que John Wayne encarnou com o melhor de seu talento histriônico, como se se desse conta de que era o papel da sua vida?
Ethan é Ulisses, que não pode voltar para casa depois de fazer a Guerra Civil –aliás, perdida pelo seu exército– derrota que ele jamais aceitará, vagando como um índio por entre os ventos durante três anos para não ter de entregar o seu sabre aos ianques. De resto, ele nunca abandonará o uniforme de oficial confederado.
Martha Edwards, sua cunhada, é a nossa Penélope; cansada de esperar pela volta do amado, um dia decide casar com o irmão dele, imaginando com isso ter criado o estratagema que lhe permitiria rever Ethan de tempos em tempos.
"Rastros de Ódio" principia com Martha abrindo a porta de sua casa, plantada em pleno Monument Valley, para perscrutar o horizonte até fixar-se na silhueta cansada de Ethan que se aproxima lentamente.
O reencontro deles é uma lição de concisão, de sugestionamento, em que o olho no olho fala mais alto que a frase convencional de boas-vindas ao cunhado pródigo. Desenhados os protagonistas do drama de amor frustro, John Ford nos conduz para o espaço aconchegante do lar de Martha, ponta de lança da civilização num cenário agreste, cuja imponência é marcada pelos tótens de terra vermelha do Monument Valley, a paisagem por excelência para John Ford, que aí se encontrava no seu meio.
Essa paisagem é povoada por selvagens em permanente confronto com os colonos que os querem civilizar, isto é, tomar-lhes as terras para exterminá-los. A palavra de ordem de ambos os lados dessa outra guerra civil que não conhece trégua é massacrar. Por um sinistro acaso Ethan vê a "sua" família massacrada, ocasião em que perde –agora definitivamente– a sua querida Martha.
Antes de chegar ao teatro da tragédia, onde só lhe caberia enterrar os mortos, mesmo assim com grande impaciência, pois a vingança não pode esperar um segundo, Ethan tem um breve prenúncio do que o aguarda. A máscara da sua dor é pungente. A partir desse momento, Ethan desce compassadamente os degraus do seu inferno, que ainda lhe reservará surpresas desagradáveis.
John Ford, com a sabedoria de um perfeito cozinheiro das almas deste mundo, vai dispondo dos seus ingredientes, com os quais nos dará a receita de um clássico. Manipula elementos dos mitos, dosa o drama com o humor e a alegria das gentes simples, toma o bufão de empréstimo das tragédias inglesas para sublinhar a precariedade do mundinho racional burguês, forja suas personagens com a mesma matéria explosiva da oficina de Zeus.
Ethan é um herói romântico castigado pelo seu destino de perdedor. Não tem recursos para se agregar à nova sociedade que então se molda, permanece à margem, escorado num código moral primitivo, é um selvagem, ainda que vista a roupa dos brancos. A ele se opõe, simétrica e complementarmente, o chefe comanche Scar, que o reconhece como um seu igual e a quem chama de "Ombros Largos". Desaparecida Martha, que poderia ainda suavizar os contornos desses ombros talhados a machadadas, Ethan mergulha fundo no olho por olho, dente por dente, escalpo por escalpo.
Martin Pawley, personagem vivida por Jeffrey Hunter, um mestiço de branco com índio que foi salvo ainda menino por Ethan, assume a função de domar o bicho John Wayne, valendo-se seja da sensibilidade dos brancos, seja da sensibilidade dos índios, de que só ele dispõe.
Quase um adolescente, terá que amadurecer na sela de um cavalo, aprender a matar, a negociar, a lutar com os próprios punhos (valendo um chute bem desferido ou uma mordida bem apanhada no adversário janota), a dialogar com os parvos, para então, cumpridas as etapas do rito de passagem, enfrentar Ethan, chamando-o para a consciência, a ele que até então se recusava a ouvir outra voz que não a do sangue.
Lembro, a propósito, a expressão do ódio mais feroz: Ethan ouve os grunhidos de uma menina branca que esteve longamente prisioneira entre os índios, e cuja personalidade foi dilacerada pelo choque das culturas em conflito, o seu rosto se crispa, os olhos fuzilam, e Ford nos brinda com uma câmara que se aproxima até o primeiro plano. Agracia o seu ator preferido com o mesmo presente que lhe dera em "No Tempo das Diligências": num movimento semelhante revelava toda a beleza viril e o vigor do jovem Ringo Kid.
A conversão é lenta e cheia de percalços; até o final não sabemos ao certo se Martin vai conseguir impedir Ethan de sacrificar a sobrinha transformada em esposa do chefe comanche ou se ele a acolherá entre os braços, num dos mais belos planos do cinema no século, que ainda faz muito marmanjo, cineasta ou crítico, chegar às lágrimas: "Let's go home, Debbie".
No plano afetivo, Martin repete Ethan, mas sua humanidade será recompensada. Um capricho da história interrompe a cerimônia do casamento de Laurie com Charlie. Cansada de esperar, ela desistirá do amor da infância, pronta a ecoar a sina de Martha, com quem tem, aliás, outros pontos de identificação.
Pela mesma moldura que abriu o filme, espécie de limiar entre a civilização e a barbárie, entre o lar burguês (um teto e uma cadeira de balanço junto à lareira como sonha Moses, o idiota) e a paisagem imponente do Monument Valley, vemos Ethan se aproximar trazendo no colo a sobrinha remida.
Ele a entrega aos Jorgersen, que vão acabar de criá-la. Assim que Debbie ingressa na casa, Ethan hesita por um instante como se quisesse também ele integrar-se ao conforto daquela ordem, sabe-se lá a que preço restaurada. Mas, logo, Laurie e Martin, entre arrufos de namorados, pedem passagem; Ethan cede o passo e eles entram. Novamente só, Ethan contempla da entrada da varanda a harmonia restabelecida, mas dá meia volta, o seu futuro é permanecer na paisagem, é dissolver-se na luz vermelha do Monument Valley, o guerreiro jamais ficará em paz com a sua guerra.

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