São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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A história segundo John Ford

SERGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Pelo menos uma coisa Napoleão (1769-1821), a infausta rainha dos escoceses Maria Stuart (1542-1587) e Abraham Lincoln (1809-1865) tem em comum: todos foram personagens de Ford. O primeiro numa comédia, O Barbeiro de Napoleão, a segunda num drama histórico, Maria Stuart, o terceiro em quatro filmes: O Cavalo de Ferro, A Mocidade de Lincoln, O Prisioneiro da Ilha dos Tubarões e A Conquista do Oeste.
A maior frequência de Lincoln se explica pelo enorme fascínio que sua figura exercia sobre Ford e seu irmão Francis, que aliás o encarnou mais de uma vez na tela. Foi o mais admirável exemplo de coragem, perseverança, honestidade e espírito de justiça que este país já conheceu, disse o cineasta numa entrevista. Vale lembrar, porém, que o herói de O Prisioneiro da Ilha dos Tubarões não é o 16º presidente dos EUA, mas o dr. Samuel Mudd, condenado à prisão perpétua por ter prestado assistência médica a John Wilkes Booth, quando este foi ferido mortalmente depois de matar Lincoln.
Biografias não podiam ser, mesmo, o forte de quem se confessava mais interessado nas lendas que nos fatos. Ainda assim, em três oportunidades Ford cedeu à tentação de contar a vida de três personalidades de sua admiração: o dramaturgo irlandês Sean O'Casey (1880-1964), cuja juventude monopoliza as peripécias de O Rebelde Sonhador, o oficial de Marinha Frank W. Spig Wead, que acabou seus dias como roteirista em Hollywood e protagonista de Asas de Águia, e o general Lewis Chesty Puller, a quem Ford dedicou um documentário, Chesty, narrado por Wayne e nunca exibido.
Nem aos ícones do Velho Oeste Ford deu muita atenção. William Buffalo Bill Cody (1846-1917) e Wild Bill Hickock (1837-1876) apareciam em O Cavalo de Ferro, mas sem realce. Para o emblemático homem da lei Wyatt Earp (1848-1929) Ford abriu uma exceção. Não havia como evitá-lo em Paixão dos Fortes, reconstituição falsamente autêntica de um dos confrontos armados mais famosos da história americana: o duelo no Curral O.K. de Tombstone (Arizona), onde, a 26 de outubro de 1881, Earp, seus irmãos e o não menos lendário Doc Holiday despacharam para o inferno o clã dos Clantons.
Ford, que conheceu Earp quando este vivia em Hollywood, batendo ponto nos estúdios da Universal, dizia ter se inspirado nas reminiscências do antigo xerife. Se verdade, Earp mentiu um bocado. Sobre si mesmo e sobre o que aconteceu em Tombstone. A contenda no Curral O.K. não foi um mero duelo, mas um autêntico massacre, que culminou com os filhos do velho Clanton dependurados como porcos num açougue.
No mais, Earp (Henry Fonda) não era o xerife de Tombstone, e sim seu irmão Virgil (Tim Holt). A julgar pela imagem mitificada que dele ressalta em Paixão dos Fortes, Earp era um misto de Lincoln com Ringo Kid (o ambíguo herói de No Tempo das Diligências) e Tom Joad, o retirante idealista de As Vinhas da Ira, também encarnado por Fonda. O próprio Ford, anos depois, admitiria ter forçado a mão. A leitura de historiadores mais confiáveis o convenceu de que Earp não havia sido o justiceiro bonachão e levemente vaidoso imortalizado por Fonda, mas um sujeito, sem dúvida bom de mira e pôquer, mas incomodamente entediado, egoísta e cínico. E com essas características o retratou numa sequência de Crepúsculo de uma Raça, com James Stewart de baralho na mão.
(SA)

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