São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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Dois homens e um destino

Ford via John Wayne como seu melhor personagem

RUY CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

John Ford ficou tiririca com uma besteira que John Wayne fizera numa filmagem. Passou-lhe a maior descompostura na frente de todo mundo e mandou-o ficar de quatro. Wayne murchou as orelhas e obedeceu. Ford então pôs-se por trás dele e deu-lhe um chute na bunda. Aplicado o corretivo, voltaram ao trabalho.
Ford era considerado "metade gênio, metade irlandês". A metade gênio é o óbvio. Está na sua obra: nos "westerns" –quase todos, de "No Tempo das Diligências" (1939) a "O Homem que Matou o Facínora" (1962)– e nos filmes civis, como "O Delator" (1935), "Como era Verde meu Vale" (1941), "Depois do Vendaval" (1952). A outra metade tem a ver com a idéia que os americanos fazem dos irlandeses –e Ford era um irlandês profissional.
Era um déspota, daqueles esclarecidos. Quando chegava para filmar, queria encontrar a equipe reunida e pronta para receber ordens. Um acordeonista anunciava a sua presença, tocando um "medley" de canções folclóricas irlandesas. Ford dava broncas monumentais e dirigia sem delongas ou nove-horas. Jamais olhava pelo buraquinho da câmara –isso era coisa de amadores (Hitchcock também achava). Era nestas condições que produzia aqueles fabulosos enquadramentos, que hoje nos parecem composições expressionistas.
Pensando bem, para que olhar pelo buraquinho? Já saía de casa com tudo na cabeça. A história fora escolhida por ele; o roteiro, não importava o roteirista (Dudley Nichols e Frank Nuggent, os mais frequentes), só fora para o mimeógrafo depois que ele o revisara e rabiscara de alto a baixo: os ângulos, todos predeterminados. E não filmava demais nem de menos –com o que não deixava alternativas ao montador (fosse também quem fosse). O produto final era exatamente como Ford o planejara.
No trabalho, usava uns chapéus desabados e paletó e calças tão amarfanhadas que era como se tivesse ido para a cama com elas. Fumava cachimbo –nos últimos anos, charuto– e, à noite, interrompidas as filmagens, bebia à beça e jogava pôquer com os atores e técnicos na locação.
Não era apenas por amor à paisagem que ele gostava de filmar no Monument Valley, no meio do deserto do Arizona. É que, ali, sabia que teria o elenco e equipe à disposição, sem famílias ou namoradas para perturbá-los. Eles eram a família de que Ford precisava: através das décadas montara um time que o acompanhava para todo lado, no trabalho ou fora dele.
Membros titulares desse time eram os atores Ward Bond, Victor McLaglen (e seu filho Andrew, futuro diretor), Harry Carey Jr., Grant Withers, seu irmão Francis Ford, a atriz Maureen O'Hara. Todos irlandeses, bebuns, chegados a emoções violentas na terra e no mar (fora das filmagens, Ford vivia a bordo de seus barcos) e dispostos a largar tudo para filmar com ele. E, agora, a surpresa: John Wayne, com quem ele fez 14 filmes, não estava entre os seus amigos do peito.
Para grande desgosto de Wayne, que o adorava. Ford o descobrira em 1928 quando Wayne tinha 21 anos, ainda se chamava Marion Morrison e trabalhava num estúdio como carregador de equipamento. Depois de usá-lo nessa função em três filmes (num dos quais deu-lhe o tal chute no traseiro), Ford deixara-o aparecer num deles. Mas foi Raoul Walsh, em 1930, que trocou o seu nome para John Wayne e fez dele o astro de "A Grande Jornada", uma superprodução de dois milhões de dólares. Ford sentiu-se "traído" por Wayne (exigia fidelidade absoluta de seus comandados) e deixou-o na geladeira por nove anos –até dar-lhe o grande papel de Ringo Kid em "No Tempo das Diligências".
A partir daí, sempre identificamos o ator como o diretor e vice-versa, como se os dois nunca tivessem feito filmes com outros. Mas Wayne ficou devendo exclusivamente a Ford a construção de sua "persona", inclusive na vida real. Em compensação, Ford deveu a ele a descoberta de Monument Valley (que Wayne conhecera num dos faroestes baratos que rodara nos anos 30) e a amizade de Ward Bond (foi Wayne que os apresentou).
Ford era apenas nove anos mais velho, mas olhava Wayne de cima para baixo, com a alguém que, astro ou não, podia ser tratado com a casca e tudo. E é curioso porque, exceto em política (Wayne, republicano; Ford, democrata), os dois eram afins como irmãos –inclusive na paixão pelo mar, pelo deserto e pelas mulheres (Ford tivera um caso com Katharine Hepburn; Wayne, com quase todas as atrizes com quem trabalhou). Mas era como se Ford visse Wayne apenas como um personagem que ele inventara– talvez o maior deles.
Quando Wayne estrelou, produziu e dirigiu "O Álamo", ao custo de 12 milhões de dólares em 1960, todos sabiam que ele estava rumo a um desastre que poderia arruiná-lo. O filme foi massacrado pelos críticos, nunca recuperou o seu custo e Wayne perdeu tudo o que tinha. Na tentativa de ajudá-lo, Ford deu uma declaração sobre o filme. Mas nunca ficou claro se estava gozando Wayne ou falando sério.
"O Álamo" é o maior filme que já vi", disse Ford, sem tirar o charuto da boca. "Existirá para sempre. Nunca deixará de ser exibido –para todos as pessoas, todas as famílias, em toda parte".
Puxa! Nem John Wayne sabia que seu filme era assim tão bom.

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