São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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Mulheres que lêem bobagens

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A mais recente pesquisa do Datafolha sobre os livros mais vendidos em São Paulo mostrou que são as mulheres que determinam os cinco primeiros colocados desta lista de felizardos. Foram elas que compraram mais livros no primeiro mês deste ano (55%) e são elas as compradoras majoritárias do primeiro livro da lista: 94% das compras do romance "Nada Dura Para Sempre", de Sidney Sheldon, foram feitas por mulheres.
A considerar o teor predominante nos livros dessa lista –o romance de amor açucarado, os livros de esoterismo e auto-ajuda– somos conduzidos à pergunta inevitável: por quê? Por que mulher lê tanta besteira?
Essa pergunta eu particularmente me fiz muito cedo, observando de longe o comportamento de uma irmã dois anos mais nova que eu. No universo pobre e opressor da nossa infância em Recife, regido por uma figura de pai instável, excêntrico e violento, cada filho arranjou um jeito de se defender.
Enquanto eu ganhava a rua, adotava modos selvagens de menino, brincava escondida em tocas de árvores, montes de terra e buracos nas pedras, minha irmã mais nova lia o tempo todo, todas as fotonovelas, todos os livros de gente grande.
Ela tinha somente nove anos mas corpo de mulher, seios muito grandes, já portando os sutiãs que eu mesma só usaria aos 14 anos. Era tão fechada em si mesma que eu interpretava sua incompreensível paixão pelos livros como algo obsceno –tão obsceno quanto deviam ser para mim seus seios talvez–, e com a mesma repugnância que encarava o gosto dos adultos por aquela coisa até então misteriosa e inaceitável para mim, a chamada relação sexual.
Pelo caminho lógico, essa minha irmã deveria ser hoje uma escritora. Mas ocorreu o contrário, a escritora sou eu, e ela é a típica compradora da lista de best sellers, para quem meus próprios livros são pouquíssimo atraentes. Em conversa recente comigo, ela e um grupo de amigas suas, entre 33/34 anos, com formação até o segundo grau, confessaram que ao ler os livros de Sheldon, Danielle Steel ou Anne Rice elas fogem da realidade, como se estivessem mesmo assistindo a um filme, durante toda uma semana de leitura.
Gostam de histórias simples, com começo, meio e fim, com suspense, aventura e amor. Disseram também que nos livros de Sheldon admiram as mulheres que sofrem muito, mas sempre conseguem se reerguer. E por fim, completaram, muito significativamente, que preferem ler esses livros quando estão se sentido carentes, precisando de amor e carinho; do contrário, "a história soa até babaca quando a gente lê".
Em outro contexto, mas com efeito muito mais chocante para mim, ouvi uma amiga minha confessar que lia todos os dias no jornal a coluna de Paulo Coelho. De formação universitária, jovem profissional competente, mãe moderna etc., ela me disse, muito convicta, que "Paulo Coelho traz mensagens mágicas, propõe, por exemplo, a concentração como caminho para se vencer na vida. Você deve se concentrar, como um guerreiro, num único objetivo. Isso me ajuda muito. Eu acho que Paulo Coelho inventou uma nova religião: a religião do self".
Ora, a importância dessa pesquisa do Datafolha está mesmo na indicação de um sintoma: na pobreza espiritual do universo desses livros, na sua superficialidade, em suas fórmulas vistosas, as mulheres encontram a possível cura para um mal-estar, uma insatisfação, "um oco, um vazio", como me disse uma delas, uma busca desesperada.
Fenômeno interessante (e algo assustador) essa procissão silenciosa de mulheres assaltando livrarias, carregando para casa pilhas de livros que lerão insones na calada da noite, com prazer quase erótico (como diria Barthes sobre o prazer do texto), molhando na ponta da língua o dedo que vira as páginas de Sidney Sheldon e Paulo Coelho, dirigindo com seu gosto duvidoso os rumos do mercado editorial.
Fosse fenômeno novo –lembra talvez a febre da fotonovela dos anos 60– seria uma espécie de rebelião silenciosa. Não tendo força suficiente para isso, pode ser apenas mais um momento de negação de tudo o que o mundo real oferece ou já pôde oferecer à mulher na busca da felicidade. É negação inclusive do homem que dorme a seu lado no aprisionamento da cama onde ela se satisfaz com o livro.
Pode ser ainda, e surpreendentemente, negação também da novela de televisão, invadida pela mão real e rude da imprensa que devassa a vida dos atores e quebra o encantamento da ficção –essa intromissão, cujo caso mais recente se deu com a atriz Vera Fischer, da novela "Pátria Minha" da Globo, acaba sendo insuportável, dolorosa mesmo, para mulheres tão aficcionadas por novelas que deixam de assisti-las quando isso ocorre.
E pode ser, por fim, sinal mais alarmante ainda de outra coisa: de que o que a mulher busca para sua felicidade pessoal e íntima é muito mais resumido e tranquilo, muito mais simples e antigo do que sonhou a mais complexa das filosofias feministas, a mais intrincada das teorias psicanalíticas sobre a histeria feminina.
A socióloga feminista americana Shere Hite diz em seu livro "As Mulheres e o Amor - O Novo Relatório Hite" que "a crença do sistema feminino na não-agressividade e na dedicação contribui para uma autocrítica ou introspecção na maioria das mulheres em períodos de tensão, conflito, ou quando atacadas".
Movida basicamente pela sensibilidade, a intuição e as emoções –pouco importa se de origem biológica ou cultural–, a compradora do best seller açucarado seria, portanto, a mulher em processo de reação contra a agressividade do mundo real à sua volta.
Hesitando entre a rudeza do discurso feminista e a hostilidade da competição no mercado profissional, ela buscaria refúgio no mito da delicadeza, do amor romântico ou mesmo imaculado como o da Virgem: afinal sua relação erótica já não seria com o homem que de noite ronca a seu lado e de dia compete com ela; seria com o livro, com o personagem, com o guerreiro mágico, Deus ou Cristo, que a levasse desse mundo terreno para uma fuga paradisíaca qualquer onde ela "vencesse na vida", como sempre vencem as heroínas de Sheldon.
No livro de Shere Hite há toda uma discussão sobre uma certa nostalgia feminina do século 19, que "foi lindo de muitos modos (...) até mesmo as casas eram acolhedoras, bonitas e gloriosas. (...) é compreensível que lamentemos a sua passagem e ansiemos por um pouco da sua beleza". De onde viria também um apelo por uma visão de vida mais religiosa: "naquela época, pelo menos as pessoas admitiam que a vida era um mistério; a visão popular atual de que devemos toda a vida à ciência é parte do cinismo presunçoso que muitas mulheres censurariam".
Já faz mais de meio século que outra feminista, Simone de Beauvoir, acusou o "segundo sexo" de desperdiçar sua coragem com ilusões inúteis e de parar no limiar mesmo da realidade, sem nunca conseguir atravessá-lo. Sobre isso a americana Ruth Brine lembrar que "os indivíduos, homens e mulheres, acham mais fácil adotar um eu já pronto do que criar um; o que viria explicar por que nossa sociedade ainda se mantém por meio de papéis e mitos".
É também sintomático na pesquisa do Datafolha que o livro mais comprado pelos homens seja "Chatô - Rei do Brasil", biografia de um self-made man, com traços de Don Juan meio cafajeste e boêmio, construtor de um império. Nada mais óbvio que a curiosidade masculina pelo mito do poder, do "sonho americano" da habilidade pessoal e do mérito.
Joseph Campbell, scholar americano especialista em mitos, diz que na eterna busca do homem por sua identidade, o mito –símbolo que evoca e direciona a energia psicológica, veículo de comunicação entre o consciente e o inconsciente, do mesmo modo que os sonhos– sempre foi elemento fundamental. Para ele, a moderna civilização ocidental, onde os velhos mitos agonizam, sofre de uma brusca ruptura desse processo de comunicação.
Campbell acha que para a grande maioria da sociedade ocidental a falta de um autoridade espiritual –antes provida pela religião– tem sido um desastre. Segundo ele, não há uma mitologia geral hoje. Os novos mitos seriam individuais. A pequena elite que pode ler e entender a literatura sofisticada de um Thomas Mann ou a pintura de Pablo Picasso teria como atualizar seus antigos motivos mitológicos.
Já a esmagadora maioria, pode-se concluir, restaria como caminho para a internalização de mitos a inconsistente lista de best sellers de auto-ajuda ou esoterismo, psicanálise, o fundamentalismo cristão ou as religiões orientais, como o budismo e o hinduísmo.
Estamos mal. Mas é ilusão pensar que as mulheres são mais burras que os homens porque lêem Sidney Sheldon. São apenas mais ridículas, porque mais indefesas na exposição de seus recalques. Basta considerar o tipo de best seller que os homens elegem.
Estamos mal porque sempre estivemos. As mulheres principalmente, como dizia, aliás, Soren Kierkegaard ao exclamar: "Que infelicidade ser uma mulher!" E ao completar: "Infelicidade maior ainda ser uma mulher e não se dar conta disso". Essa lista de best sellers revela um pouco dessa infelicidade infusa e fatal.
A solução para escapar dessa fatalidade da "condição feminina" estará talvez na criatividade apontada por Norman Mailer em seu "The Prisoner of Sex" ( O Prisioneiro do Sexo): "(...) seres humanos dotados de vaginas, mas não necessariamente devotados à maternidade desde o nascimento, devem se aprofundar em uma condição qualquer que não seja automaticamente feminina, devem dar um salto criativo na trajetória que vai transformá-las em mulheres".
Nesse sentido, talvez eu tenha ido um pouco mais longe que minha irmã. Nos esconderijos das pedras, eu pedia (na verdade mandava) os meninos abaixarem as calças para que eu visse o pênis deles. Era ao mesmo tempo uma maneira de experimentar sexo, compreender a diferença (eles tinham o que eu não tinha) e de me encher de forças para enfrentar com meus próprios recursos o poder excessivo do meu pai. De certo modo, como mulher, saí vencedora dessa batalha pessoal. Como escritora, não adianta: minhas histórias não cativam minha irmã.

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