São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 1995
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A enciclopédia das cavernas

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O anúncio feito há poucos dias da descoberta de uma caverna com pinturas pré-históricas na França vai sacudir o estudo desse tipo de arte.
Essa é uma área de pesquisa repleta de hipóteses difíceis de checar. Não há consenso sobre o significado dos desenhos dos homens das cavernas.
A chegada de 300 novos desenhos feitos 20 mil anos atrás tende a pelo menos jogar lenha nos debates entre especialistas.
O deus dos arqueólogos deve ter ficado com pena dos franceses para conceder a eles este achado fortuito (a caverna, no centro-sul do país, perto de Vallon-Pont-D'Arc, foi achada por acaso por Jean-Marie Chauvet, guardião de cavernas da região, no natal passado).
Foi na França que um bem intencionado mas razoavelmente estúpido grupo de escoteiros apagou pinturas pré-históricas achando que eram pichações sem valor. Pelo feito, os escoteiros receberam (mas não foram buscar) o prêmio Ig Nobel, trocadilho com a palavra "ignóbil", concedido nos EUA a "pesquisas que não podem ou não devem ser reproduzidas".
Para evitar que esses meninos ou outros vândalos destruíssem o novo patrimônio artístico, o Ministério da Cultura francês só anunciou a descoberta depois de providenciar proteção para a caverna. A princípio só especialistas poderão visitá-la.
As fotos divulgadas mostram animais raros de ver nessas pinturas do chamado período paleolítico, ou "da pedra lascada", por apresentar achados de ferramentas deste tipo.
Pela primeira vez se viu o desenho de um leopardo. Há raros desenhos de rinocerontes lanudos, um animal que vivia na Europa durante essa era glacial em que havia geleiras em boa parte do continente. Animais mais comuns estão representados também: cervos, renas, bisões, cavalos etc.
Cada momento da história recente da pesquisa sobre pré-história mostra uma interpretação dominante. Durante muito tempo as explicações eram voltadas para o lado ritual e mágico dos desenhos, que poderiam estar ligados à caça ou mesmo à fecundidade.
Mesmo agora houve quem chamasse a caverna de uma "catedral" pré-histórica. De fato, o achado de uma caveira de urso sobre pedras tende a ser considerado uma espécie de altar por muitos.
Segundo o arqueólogo britânico Steven Mithen, na década de 60 as explicações tendiam a enfatizar os elementos artísticos ligados ao sexo. Por quê? Porque essa era a década da "liberação sexual" no Ocidente, com a pílula anticoncepcional e o "amor livre".
Já houve momentos em que essas pinturas nas cores vermelha, amarelo, preto e ocre eram consideradas puro devaneio dos homens das cavernas, algo como "arte pela arte", o desabrochar da criatividade humana.
Hoje as hipóteses deram a volta no círculo e tendem a ser utilitaristas. Os desenhos seriam como que uma enciclopédia do comportamento animal contendo dados úteis à caçada, diz Mithen, um dos seus adeptos.
Segundo o francês Denis Vialou, certas imagens de cervos achadas na caverna de Lascaux, também na França, mostram-nos com o tamanho e estrutura exatos, variando de acordo com as estações do ano.
O mero catálogo de bichos já dá uma pista boa aos pesquisadores. Mithen argumenta que a teoria da "magia da caça" não está de acordo com dados sobre quais animais são mais desenhados.
Os vestígios de ossos nas cavernas mostram que cervos e renas eram os mais caçados no sudoeste da França e norte da Espanha. Se a pintura tivesse a função ritual de dar sorte na caçada, deveria portanto haver mais desenhos de renas e cervos. Mas não é o caso. O bisão e o cavalo aparecem mais nas pinturas –são 50% delas.

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