São Paulo, segunda-feira, 30 de janeiro de 1995
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'Tradução deve manter a ambiguidade'

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Leia a seguir a entrevista com John Gledson sobre Machado.

Folha - Quais as principais dificuldades que o sr. está sentindo ao traduzir o livro?
John Gledson - O livro é muito difícil de traduzir. Há frases que são impossíveis de traduzir sem escrever uma frase muito maior do que a que ele escreveu. O que tento é encurtar, ser conciso.
Folha - Como o sr. vê a relação entre os dois idiomas? Existe algo no português que não existe no inglês e vice-versa?
Gledson - É difícil apontar. Mas o que o português do Machado tem é uma estranha mistura do coloquial e do erudito, sobretudo no tom do Bentinho, que é advogado. Ao mesmo tempo, é um romance sobre juventude e infância, então há um tom íntimo também.
E eu tinha notado antes, mas agora noto mais, ao traduzir, que há uma força muito grande no livro, sobretudo de implicação sexual, em certos momentos.
Folha - O inglês é uma língua flexível, rica, de muitos monossílabos. Nesse sentido, facilita?
Gledson - Sim, e o inglês tem dois registros, o anglo-saxônico e o latino. O alemão, por exemplo, não tem tantas palavras de origem latina. Mas eu acho que tenho de ir pelo lado anglo-saxônico, que tem palavras mais fortes, mais íntimas e expressivas. Ao mesmo tempo, dado o vocabulário do Bento, não posso fugir do lado latino.
Folha - Machado sofreu muita influência da literatura inglesa, daquela ironia indefinida que o sr. analisou nas crônicas dele. Mas o crítico Harold Bloom, por exemplo, não colocou os livros de Machado em seu cânone ocidental porque julga as traduções para o inglês insatisfatórias. O que o sr. acha?
Gledson - As traduções que li de "Dom Casmurro" e "Brás Cubas" me deram a impressão de que, do ponto de vista literal, elas são perfeitamente legíveis, em geral. A tradução de Helen Caldwell para "Dom Casmurro" é boa, e a de Scott-Baccleuch também não é ruim, mas omite nove capítulos!
Folha - O sr. teve papel importante, na linha de Roberto Schwarz, de valorizar o contexto histórico brasileiro nas obras de Machado. Ajudou a liquidar a leitura formalista de Machado.
Ao mesmo tempo, o sr. acredita que Capitu não traiu Bentinho, o que é uma crença dos críticos mais formalistas. O sr. acredita nisso ainda?
Gledson - O coração me diz que ela não traiu, mas a cabeça não sabe dizer. Acho que no romance não há prova da traição. No final, sinto que ela é inocente.
É preciso lembrar todos os preconceitos do século 19 sobre o que uma mulher tem de fazer ou não tem de fazer, sobre adultério.
Folha - Alguns críticos sustentam que a indefinição é a chave do romance, do realismo dele.
Gledson - Eu penso que ele se achava um realista, porque os que não eram realistas eram os que achavam que você pode ver tudo. O realismo dele é o de quem está narrando. Ele faz força para que o ponto de vista do narrador seja acreditável. Essa pessoa tem um ponto de vista limitado porque isso é da realidade.
Folha - Machado, no livro, se refere aos "leitores obtusos, que nada entendem, se se lhes relata tudo e o resto". E diz em seguida: "Vamos ao resto". Deixa o "tudo" de lado. Isso não indicaria que ele se nega a relatar o fato porque não é necessário?
Gledson - Mas não há certeza. O "tudo" não existe. Machado odiava o cientificismo do século 19, o naturalismo de Zola, que reduzia a pessoa a uma equação química. Ele era realista.
Folha - O sr. acha que, de alguma forma, já que acredita que não houve traição, sua tradução pode ser influenciada, dar uma margem maior à hipótese de que Capitu não trai?
Gledson - Acho que a tradução não vai influir nisso. Quero manter a ambivalência do original, serei fiel, não vou dizer coisas que o Machado não diz. A questão é achar o tom certo.
Acho que seria imoral, também, reduzir o romance a essa questão. Cada leitor tem que tirar sua própria opinião.
Folha - Machado é um escritor à altura de poucos outros no mundo. Mas é possível que seja desinteressante ao estrangeiro?
Gledson - Temo um pouco que sim. A vivacidade do estilo de Machado não parece se exportar –"Dom Casmurro", principalmente, por envolver todo um universo social de que o leitor brasileiro é ciente, não o estrangeiro.
E Machado não fazia esforço, não era como García Márquez e Fuentes, que escrevem com o leitor estrangeiro em mente. Machado escrevia totalmente dentro de sua cultura, para sua cultura.
Mas Machado tem de ser exportável; é grande literatura. A tradução tem de procurar uma naturalidade, mas o problema é que às vezes Machado não escrevia claro, escrevia enviesado, ambíguo.

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