São Paulo, segunda-feira, 30 de janeiro de 1995
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Romance não propõe charada

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

São três as reações à questão "Capitu traiu ou não?". Duas dividem curiosamente a intelectualidade: de um lado, os acadêmicos, como Gledson, que acreditam na inocência de Capitu; do outro, os jornalistas e ficcionistas, como Otto Lara Resende e Dalton Trevisan, que não têm dúvidas de que ela traiu Bentinho com Escobar.
A terceira, extremamente perniciosa, é a reação dos que dizem que a questão é irrelevante, afinal o livro de Machado jamais descreve ou afirma o adultério.
O grau de cisão entre as duas primeiras reações mostra que a terceira é a dos pobres de espírito.
A questão é importantíssima. O livro não é uma charada (traiu ou não traiu?), mas não há compreensão dele sem debater a questão, isto é, a intenção do autor.
Intenção. Que Machado escrevia com intenção, sob controle, dando continuidade factual, estabelecendo nexos de consequência –não pode negar nem mesmo quem só leu "Brás Cubas", seu livro mais fragmentário.
Outra característica inegável de Machado –o introdutor da metalinguagem no país– é sua referência à literatura já existente.
Assim, quando sugere os encontros furtivos de Capitu e Escobar (como no capítulo 113), o pastiche ciente dos romances franceses sobre adultério está claro.
Por que então um realista, que cria narradores com o poder de se deslocar da narrativa, adotaria um que sofre de alucinação permanente, sem consciência de nada?
Pois essa é a conclusão natural da hipótese dos acadêmicos que acham que Bentinho, como o Otelo de Shakespeare, é cegado pelo ciúme e, portanto, desautorizado como relator de fatos reais.
Mas muito do que Bentinho relata, apesar do tom de suspeição, ocorre. Assim, quando conta que José Dias pedia fotos de Ezequiel à mãe, Capitu, e esta não atendia o pedido, o leitor pode crer que é fato. Se não é, para que contar? Por que Machado escreveria um livro sem credibilidade? Isso sim seria reduzir literatura a charada.
O que Machado evitou foi franquear, foi descrever uma cena de alcova: "Então Bentinho abriu a porta, e o que viu foi entontecedor; seu melhor amigo e sua adorada esposa beijando-se ardentemente." Não. Como nota Trevisan em texto hilário no livro "Dinorá" (editora Record), essa vulgaridade Machado não cometeria.
Há provas da traição, sim (leia frases no quadro acima) –não cabais, como nota Gledson; mas estão no livro para quem quiser ver.
O tom impreciso não tem a função de instaurar a dúvida no leitor, embora a maioria dos capítulos retrate a dúvida de Bentinho, e sim a de enriquecer com diversidade de pontos de vista a psicologia dos personagens, sobretudo Bentinho.
Daí a existência de um subtexto mais importante que a "charada", e decorrente dela: a inveja sexual que Bentinho sente de Escobar. Mas quem se fascina pelos olhos de cigana de Capitu não percebe. Como os narradores de Machado, seus leitores têm de se destacar emocionalmente da realidade. É preciso piscar para enxergar.
(DP)

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