São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Ismael e Murilo: entre amigos

DAVID ARRIGUCCI JR.

tempo e do espaço que propunha como método de investigação filosófica das coisas essenciais. Consideravam-no uma preparação para o catolicismo, em cuja transformação se achava profundamente empenhado Ismael. Até hoje é difícil saber com precisão em que consistia esse ``sistema" filosófico tão falado, apesar das tentativas de resumo e dos depoimentos que há sobre ele. Mais relevantes parecem ser as repercussões ou as franjas dessa questão filosófica para a vida prática e espiritual dos dois amigos, sobretudo para a visão poética muriliana (e não apenas para os poemas essencialistas de Ismael ou de Murilo), qualquer que seja a importância em si mesma do essencialismo, quem sabe, para seu próprio bem, levado por vagas nuvens passageiras ou resumido e secretamente sepultado nas páginas da revista ``A Ordem", de onde nunca ressuscitou.
Murilo vê o pensamento do amigo, antes de mais nada, como uma filosofia para ser vivida, voltada para a existência concreta de cada dia, formando corpo com um catolicismo do contra, alimentado de cristianismo primitivo, impelido pela revolta diante do mundo dado, seus desencontros e injustiças. Confiante na divindade de Cristo e na atualidade viva de seus ensinamentos, Ismael exaltava também a verdade da encarnação e da humanidade de Cristo, tomando-o como modelo supremo de filósofos, poetas e artistas. Em consequência, se regia por fundo sentimento humanitário, que o levava a aderir religiosamente aos problemas do cotidiano, buscando portas para todo desejo de libertação.
Atraído pela feição libertária dessa religião renovada, que não via incompatibilidade alguma entre sexo e espírito religioso, a ética anarquista de Murilo, seu inconformismo, seu espírito de revolta desde cedo muito vivo, acabou por casar-se à fé inabalável do amigo, que ao mesmo tempo conduzia a todos os caminhos aparentemente desimpedidos, abertos pelo momento histórico: aspectos que lhe pareciam justos no comunismo e, sobretudo, o surrealismo -Ismael vai a Paris em 1927 e entra em contato com Marc Chagall-, considerado por ambos como ``o evangelho da nova era, a ponte da libertação".
Essa mistura inusitada de cristianismo com surrealismo, movimento que sabidamente se opunha ao espírito cristão com a mesma força com que atacava a razão instrumental do espírito burguês, talvez tenha encontrado terreno propício na pecularidade do catolicismo de que se nutriam aqueles amigos inseparáveis e inquietos. E vicejou com a força do desejo, a que sempre foram tão fiéis os surrealistas.
A idéia do cristão como um ser estranho no mundo parece afim à concepção poética de modo geral e, em particular, à surrealista. Nela pode muito bem radicar-se a percepção das discórdias e contradições que ferem a sensibilidade do poeta, assim como dela pode brotar a busca da harmonia do universo, mediante a concordância do discorde, a reunião do disperso, a analogia, enfim, fonte perene da imagem poética, que está no centro da visão surrealista, como aspiração à síntese da totalidade ou a uma realidade digna do nome.
Por outro lado, o sentimento cristão de que Murilo se embebeu através de Ismael é também um modo de lidar concretamente com o desconcerto do mundo, com o atrito das idéias e das coisas, e por isso, embora marcado pela busca da transcendência, não perde de vista o chão histórico e o senso crítico. Por isso ainda, se enlaça facilmente a uma inspiração poética estimulada pela visão do contraditório e a uma concepção do poema como agente da conciliação de contrários (3). Assim, tampouco se afasta de uma poesia que a todo momento converte em concreto o abstrato, ao mesmo tempo que é capaz de permanecer atenta a todo apelo do transcendente ou de banhar-se em clima visionário, muito próximo sempre da atmosfera insólita dos encontros surrealistas. Uma poderosa mescla dessa forma se processa, e parece impossível compreender-se adequadamente o poeta (ou o pintor) sem levá-la em conta.
As ``Recordações" contêm, portanto, o mapa de um percurso que levou à fusão doutrinária, à descoberta espiritual e à profunda identificação pessoal, predispondo os dois amigos para os encontros mais inesperados. E pode valer como um precioso elemento de auxílio no reconhecimento crítico do pintor Ismael e do poeta Murilo, pois a ambos ilumina separada e mutuamente, enquanto homens e artistas.
Embora o livro contenha elementos próximos de um gênero ficcional como a confissão, a prosa não tem aqui a força literária de outros momentos de Murilo: ``A Idade do Serrote" ou ``Poliedro", por exemplo, feitos com garra poética, naquele estilo condensado, de curtos-circuitos, elipses e explosões imagéticas irradiantes. Não consegue tampouco a percuciência e a límpida elegância de escrita dos textos críticos ou dos ``retratos-relâmpago", que se medem pela precisão. Apesar da tensão espiritual que demonstram em largas passagens, estas páginas carecem do brio e da agudeza das demais obras em prosa; falta-lhes a chispa do desconcerto muriliano. Mas não chegam a desapontar em sua agradável fluência; apenas a soltura jornalística torna-as transparentes, para realce do assunto. Murilo talvez as retrabalhasse, se a elas tivesse podido voltar.
Mais importante aqui do que a qualidade da prosa, é o teor do documento, que adquire valor literário, por assim dizer obliquamente. É que uma literatura não vive sem textos como este, pois depende deles até para que se possa compreender o que em determinado momento se concebe por literatura, como foi o caso no período modernista. O livro ganha força à medida que entendemos o relevo que adquiriram então as relações entre as pessoas que participavam do cenário cultural, a ponto de constituírem não apenas uma vida literária densa e enriquecedora para todos, mas matéria mesma de literatura e fator de incentivo para a produção das grandes obras.
O diálogo, o debate intelectual, a ampliação da experiência e do conhecimento, a discussão crítica, o intercâmbio de idéias, a expansão da vida do espírito, tudo aponta para a maior espessura e complexidade do meio cultural brasileiro, de que esse livro é resultado e indício. É nesse quadro de intensas e intrincadas trocas entre o plano literário e o da experiência pessoal, que se transformam o próprio conceito e as convenções da literatura, sofrendo o espaço literário uma considerável expansão, pelas novas relações do recesso da intimidade com a esfera pública do escritor, ganhando-se um território novo, antes não organizado artisticamente, nem do ponto vista temático nem do ponto de vista técnico. Há uma nítida ampliação da esfera da experiência literária, que deixa o terreno seguro dos grandes temas universais para adentrar-se na privacidade da vida de relação particular, com que passa a alimentar as novas obras, inclusive pela descoberta de novas técnicas de expressão, profunda e organicamente articuladas ao processo de descobrimento dos novos temas.
A literatura tende a se aproximar da matéria bruta do mundo vivido, da linguagem oral, da experiência do cotidiano. É nesse contexto que se desenvolvem o verso livre, a montagem, o monólogo e o discurso indireto livre na ficção, a desintegração do princípio de causalidade do enredo tradicional, as posições mais ambíguas do narrador, minadas pela dissolução no relativismo da subjetividade. A esse novo quadro, configurado pela entrada das formas do mundo moderno, pertence também o realce dos documentos pessoais -cartas, memórias, depoimentos, literatura de testemunho-, nos quais transparecem as mudanças da vida de relação e da experiência, a que se prendem muitas das novas emoções e convenções da literatura. A esse quadro, pertencem assim também as grandes amizades, como a de Murilo Mendes e Ismael Nery.
Peculiaridades à parte, ela lembra outras, como a que ligou, com o mesmo fervor, mais crítica e com admirável senso de igualdade e de liberdade, Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Do fundo desses seres idos e vividos, chega até nós um legado de experiência e moralidade. E dão idéia do que poderia ser a vida civilizada no Brasil, se anuladas as desigualdades e criada uma verdadeira fraternidade como essa, entre amigos. Talvez por isso, caladas há tanto tempo, essas grandes amizades renasçam pela força da memória transmitida em textos como este: daí ainda nos falam, como toda a vivacidade, ao espírito.

NOTAS
1. Originalmente publicado, sob a forma de uma série de artigos, em ``O Estado de S. Paulo" e em ``Letras e Artes", em 1948
2. Cf. Montaigne, Michel de, ``De l'Amitié", em seus ``Essais". Ed. de A. Thibaudet, Paris, Nouvelle Revue Française (1939), cap. 28, pág. 197
3. Veja-se, nesse sentido, o notável artigo ``A Poesia e o Nosso Tempo", que Murilo publicou no ``Suplemento Dominical" do ``Jornal do Brasil", em 25/7/1959, reproduzido em: Candido, A. e Castello, J.A., ``Presença da Literatura Brasileira", 3ª ed. rev., São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1968, vol. 3, págs. 179-184

DAVI ARRIGUCCI JR. é professor de teoria literária na USP e autor, entre outros, de ``O Escorpião Encalacrado". O texto acima, que o Jornal de Resenhas publica com exclusividade, é o prefácio do livro a ser lançado pela Edusp

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