São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Fragmentos de uma formação

MARCOS VINICIUS MAZZARI

Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister
Goethe
Tradução: Nicolino Simone Neto
Ensaios, 618 págs.
R$ 25,00

Fragmentos de uma grande confissão" foram as palavras com que Goethe certa vez se referiu às suas obras literárias. Sendo assim, nessa vasta produção lírica, épica e dramática, o romance ``Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister" remete à questão que talvez tenha sido a mais crucial de sua existência: a da ``formação". Mas ao contrário da autobiografia ``Poesia e Verdade", que conta a história dessa formação de maneira mais direta, nos ``Anos de Aprendizado" vigora plenamente o procedimento goethiano de revelar o sentido mais profundo e secreto das experiências humanas, através de ``imagens que se contrapõem umas às outras e ao mesmo tempo espelham-se umas nas outras", com os símbolos desdobrando toda a sua força inexaurível.
O impacto que essa obra teve já sobre os contemporâneos de Goethe pode ser aferido em parte pela famosa sentença de Friedrich Schlegel que a situa, ao lado da ``Doutrina da Ciência", de Fichte, e da Revolução Francesa, entre ``as três grandes tendências de nossa era". Com o ``Wilhelm Meister" nasce ainda a longa tradição do ``romance de formação" (Bildungsroman), certamente a mais significativa contribuição alemã à história do romance europeu. Quanto ao conceito de ``formação", é preciso assinalar em primeiro lugar que na tradução brasileira o substantivo alemão Bildung e o verbo reflexivo sich bilden, aparecem não apenas como ``formação" e ``formar-se", mas também como ``cultura", ``instrução" ou ``ilustrar-se", ``instruir-se" etc. Isto, porém, nem sempre se justifica, já que Bildung pouco tem a ver com conteúdos intelectuais, referindo-se antes a um processo de aprimoramento da personalidade, à aquisição de uma ampla mestria de vida.
``Para dizer-te em uma palavra: instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a juventude". Esta é provavelmente a frase fulcral dos ``Anos de Aprendizado", inserida na longa carta (3º capítulo do 5º livro) em que Wilhelm comunica ao seu cunhado Werner a decisão de abandonar de vez a carreira burguesa que lhe estava predeterminada e buscar sua formação através do engajamento numa companhia teatral. Já no início da carta, explicitando a incongruência entre as atividades comerciais e o forte impulso de auto-aprimoramento, Wilhelm se pergunta: ``De que me serve fabricar um bom ferro, se meu próprio interior está cheio de escórias? E de que me serve também colocar em ordem uma propriedade rural, se comigo mesmo me desavim?". E após discorrer longamente sobre as condições de vida do nobre e do burguês na Alemanha da segunda metade do século 18, Wilhelm estabelece uma relação entre a esfera da nobreza e o mundo dos palcos, onde espera realizar a ``inclinação irresistível" pela formação harmônica de sua natureza e, ao mesmo tempo, contribuir para a criação de um futuro ``Teatro Nacional".
Acontece, porém, que o processo de formação traçado no romance está longe de percorrer o desenvolvimento harmônico que se costuma associar a concepções classicistas. Assim, se a opção teatral de Wilhelm Meister correspondeu, num momento de sua trajetória, a uma forte verdade íntima, o momento seguinte será marcado pelo afastamento definitivo do teatro. O ponto de viragem cristaliza-se exatamente no 5º livro, quando suas atividades artísticas atingem o ápice com a encenação do ``Hamlet" shakespeariano.
A transformação por que passam as concepções expressas na carta a Werner se dá sob a influência da assim chamada ``Sociedade da Torre", representada por Goethe como uma comunidade fechada, algo esotérica, na qual atuam homens esclarecidos, práticos, movidos por ideais humanistas. Estes, como se esclarece nos dois últimos livros, vêm acompanhando desde o início do romance todos os passos de Wilhelm (na verdade, às escondidas, mesmo do leitor). Somente à luz dessas revelações finais é que muitos acontecimentos anteriores serão plenamente elucidados, descortinando-se então uma nova perspectiva de leitura. O conceito de formação passa a ser entendido menos como desenvolvimento gradativo de inclinações e predisposições do indivíduo do que enquanto processo de socialização, interação entre o Eu e o mundo ou ainda -para usar a expressão de Hegel- a superação do conflito entre a ``poesia do coração" e a ``prosa das relações sociais".
É importante observar que o narrador goethiano, na caracterização da Sociedade da Torre, acentua de maneira levemente irônica sua dimensão utópica. Não é a realidade histórica que está sendo retratada -parece ser a mensagem constante da ironia-, mas sim uma síntese de tendências humanistas acalentadas por muitos contemporâneos e cuja urgência se reiterava pelo desenrolar dramático da Revolução Francesa. A Sociedade da Torre tem em Lothario, no Abbé e em Jarno suas principais figuras. O primeiro personifica o indivíduo politicamente inteligente, de visão ampla, que age em consonância com as necessidades da época. Membro da nobreza, Lothario possui aguda consciência da delicada situação política na Europa do final do século 18. Por conseguinte, defende ideais de uma convivência equilibrada entre nobreza, burguesia e camadas populares. Postula a abolição dos privilégios da nobreza, o controle mais rigoroso do comércio (através de impostos), a constituição de um poder central na Alemanha fragmentada em inúmeros estados. No 3º cap. do 7º livro, Lothario expõe suas idéias de reforma agrária: ``Nem sempre se perde quando se abre mão de algo. Não hei de aumentar mais ainda meus rendimentos? E terei de gozar sozinho dessas crescentes vantagens? Não devo conceder também àquele que comigo e para mim trabalha sua parte nos benefícios que os largos conhecimentos e o progresso de uma época nos proporcionam?".
Este Lothario, espécie de social-democrata avant la lettre, empenha-se em concretizar tais medidas em suas propriedades, pois são racionais, sustenta ele, e assim deve-se apenas agir corajosamente e o mais rápido possível. Trata-se aqui, portanto, menos de ações filantrópicas do que de um programa para prevenir possíveis agitações sociais. O embate com as posições de Werner torna-se inevitável. No 2º cap. do 8º e último livro livro, diz este: ``Posso assegurar-lhe que em toda minha vida jamais pensei no Estado"; e Lothario reitera a necessidade de reduzir drasticamente as distâncias entre as classes sociais, começando por taxar com rigor as grandes propriedades da nobreza: ``Que outro motivo tem o camponês, nesses tempos modernos, em que tantos conceitos vacilam, para considerar como menos fundada a propriedade do nobre que a sua, senão por aquela estar isenta de encargos e a sua não?".
Enquanto Lothario se ocupa prioritariamente de questões sociais, o Abbé está envolvido com idéias e teorias pedagógicas, pois é o responsável pela formação dos jovens. É este que, introduzindo Wilhelm nos segredos da Torre, entrega-lhe sua ``carta de aprendizado", que contém sentenças gerais sobre a vida, mas sempre com referências especiais a circunstâncias da trajetória do pupilo. Ao mesmo tempo em que se explicitam aqui os pontos centrais da filosofia da Torre, anuncia-se a Wilhelm o término de seus anos de aprendizagem: ``Estás salvo e a caminho de tua meta. Não te arrependerás de nenhuma de tuas loucuras, tampouco sentirás falta delas; não pode haver para um homem destino mais venturoso".
O fato, porém, de que a este momento de ventura segue-se um período de profunda desorientação mostra mais uma vez que a formação do jovem Meister não tem um desenvolvimento harmônico, linearmente evolutivo, dando-se antes de forma descontínua, também através de erranças e reveses. Se no amplo espectro de experiências e tipos humanos que marcam a trajetória de Wilhelm, a Sociedade da Torre representa a força mais organizada e racional, no pólo oposto situam-se as figuras do velho harpista e da criança Mignon, cuja relação de parentesco se revela no final do romance. Vivendo numa espécie de liberdade incondicionada e, ao mesmo tempo, aprisionadas por uma nostalgia profunda e indefinida, essas duas personagens românticas encarnam de forma radical as concepções que os membros da Torre buscam combater em Wilhelm. O harpista, levando ao extremo a idéia da fatalidade do destino, confessa àquele o motivo de seu desespero: ``A vingança que me persegue não é a do juiz terreno; pertenço a um destino implacável". E quando Wilhelm decide ocupar-se da formação de Mignon, esta se retrai com as palavras: ``Já estou bastante instruída para amar e sofrer. (...) A razão é cruel, melhor é o coração".
``Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister" são, acima de tudo, um romance narrado com uma mestria que encontra poucos paralelos na literatura universal. Para a história ainda em desdobramento do Bildungsroman -que aliás transcende as fronteiras da literatura alemã, podendo-se considerar aqui mesmo suas manifestações enviesadas em nossa literatura-, possuem uma importância seminal. Extraordinária é também a dimensão enciclopédica dessa obra, plena de aventuras (as amorosas sendo coroadas pela união de Wilhelm com Natalia, o que enseja o belo desfecho do romance), também de agudas reflexões sobre os gêneros literários assim como de momentos do mais puro lirismo (as canções de Mignon e do harpista).
Todo o 6º livro é composto por uma narrativa largamente autônoma, as ``Confissões de Uma Bela Alma", que contam a história de uma formação de fundo pietista. A dimensão social fica patente nos trechos que giram em torno da Sociedade da Torre e de suas idéias reformistas. Em alguns momentos do romance parece ser o próprio Goethe que, transcendendo a esfera irônica do narrador, toma a palavra para expor suas concepções: ``Só todos os homens juntos compõem a humanidade; só todas as forças reunidas, o mundo. Estas estão com frequência em conflito entre si e, enquanto buscam destruir-se mutuamente, a natureza as mantém juntas e as reproduz".
Numa conversa com Eckermann, em janeiro de 1825, o velho Goethe chamou aos ``Anos de Aprendizado", escritos 30 anos atrás, uma de suas ``produções mais incalculáveis", para a qual chegava quase a faltar-lhe a chave. O comentário restante do autor lembra a história bíblica apresentada ao próprio Wilhelm como balanço simbólico de suas experiências: trata-se de Saul, que sai em busca das jumentas de seu pai Quis e acaba encontrando todo um reino. A recente edição brasileira -em tradução fluente e adequada (em que pesem alguns pontos questionáveis), acompanhada de notas esclarecedoras e de um útil índice remissivo- é uma nova oportunidade de vivenciar a incomensurabilidade dessa obra goethiana.

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