São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Aníbal arlequinal

MARIA AUGUSTA FONSECA

Erramos: 13/10/95
Parque de Diversões
Aníbal Machado Organização de Raul Antelo
UFMG/UFSC, 305 págs.
R$ 20,00

A Arte de Viver e Outras Artes
Aníbal Machado
Graphia Editorial, 310 págs.
R$ 26,00

Manuel Bandeira, numa crônica de 1956 sobre o filme ``La Strada", de Federico Fellini, novidade cinematográfica conferida naqueles dias pelo público carioca, destaca a presença do escritor Aníbal Machado (1894-1964) no saguão de uma sala de espetáculos. Ao evocar o encontro, o poeta perfila o artista e o intelectual: ``Vendo no meio do público numeroso a pequena figura elétrica de Aníbal Machado, fiquei tranquilizado: o criador do mítico João Ternura está sempre bem informado e a sua presença numa assistência é sempre índice de espetáculo de alta classe".
Esse fino paladar crítico de Aníbal Machado, então em recesso, volta a oxigenar a memória cultural com ``Parque de Diversões". Trata-se de uma reunião de esparsos e inéditos do escritor, materiais de variada ordem, processados num meticuloso trabalho do crítico Raul Antelo. O volume obedece à determinação de um projeto, da seleção de textos ao modo de organizá-los. O autor arrola artigos, entrevistas, depoimentos, resenhas, recortes autobiográficos, poemas, fragmentos de diálogos, expondo na escolha o resultado de muitos anos de pesquisa em bibliotecas, arquivos particulares, depoimentos tomados de amigos do escritor, papéis guardados pela família Machado e intocados desde a morte de Aníbal em 1964.
``Parque de Diversões", assim nomeado, recupera um título que Aníbal Machado pensou (consoante Manuel Bandeira) para uma eventual reunião de suas crônicas. A obra foi estruturada em unidades temáticas, privilegiando um Aníbal Machado arlequinal. O conjunto exibe preocupação interpretativa. Antelo inventaria e dá mobilidade aos ``papéis avulsos", favorecendo aspectos da descontinuidade, sem deixar de historicizar, recuperando certos traços da dinâmica da produção anibalina. Assim, identifica máscaras, intercala flashes, tira da estante a literatura de circunstância, roteiriza a crítica, enfeixa territórios metafóricos -vento e pedra-, procedendo à colagens de material, inventaria fragmentos genéticos de ``João Ternura".
No ensaio introdutório à obra, Antelo persegue a polifonia de disfarces do escritor: a identidade fraterna com Carlitos; a face quixotesca; um incerto pendor surrealista; a cumplicidade com a tradição modernista de 22, ele próprio um batalhador da bancada mineira. O corpus escolhido imprime um Aníbal Machado intenso, indócil, paradoxal: o olhar antecipador, o observador de seu tempo, seus descaminhos e metamorfoses.
``Parque de Diversões" evoca o espaço lúdico da praça pública e o sentido plural dos brinquedos, proporcionando ao leitor encontros inesperados, descobertas, retomadas, prazeres da leitura. Antelo procura constelar e dar um caráter coerente ao que pesquisou. Se raro comete excessos, enxertando no vasto material fatias do percurso genético de ``João Ternura", tem como justificativa a oportunidade de oferecer inteligência e sensibilidade, desentranhando questões incisivas sobre a obra do artista, enredando o leitor pelos caminhos do lirismo e da ironia, na complexa geometria anibalina do presente. O trabalho se orquestra de modo a não afastar o cidadão do artista. E adensa a crítica para marcar-lhe as tensões, sem esconder as arestas.
O leitor terá a oportunidade de desfrutar esse ``Parque de Diversões" de Aníbal, também seguindo seu próprio itinerário. Nas páginas sobre a personagem Carlitos as análises frutificam o olhar sensível (poético e social), como se depreende de ``Chaplin e os Irmãos Marx", ``Carlitos", ``O Andarilho". Literatura, cinema, artes plásticas, teatro mobilizam a reflexão cotidiana do escritor. A pena fina, por exemplo, sulca com maestria um desenho interior do gravurista Oswaldo Goeldi, ao mesmo tempo em que faz uma leitura em profundidade do mundo de sóis negros que emerge de sua obra. Encontramos ainda entre os exercícios da escritura, ``Esboço de Retrato" e ``Autobiografia". Essas fotografias de si mesmo são a leitura na fava (Barthes) de um universo pessoal, entrançado por reflexões agudas sobre o Brasil e sobre as condições do homem, no sentido amplo de suas vivências. Enfim, seus trabalhos cumprem a tarefa de disseminar dúvidas, provocar discussões, dialogar, aprofundar o conhecimento, para multiplicar vozes exigentes e formar sonhadores de caminhos, como uma vez garimpou de Hõlderlin: "É poeticamente que habitamos esse mundo.
Nas pegadas comemorativas do centenário do autor, o leitor ainda poderá fugir de um outro lançamento, ``A Arte de Viver e Outras Artes", obra que também arrola esparsos de Aníbal Machado e reedita, no mesmo volume, o sempre atual ``Cadernos de João". A edição oferece a diversidade do fazer de Aníbal Machado em módulos convencionais. Apresenta um guia bibliográfico oportuno de e sobre o autor. Na introdução, o volume se valoriza com o depoimento de Paulo Mendes Campos, escrito sob o impacto da morte do escritor, e ``Lembranças de uma casa de Ipanema", introdução de Leandro Konder (maio, 1994), avivando com recortes o pequeno território do bairro que foi passagem obrigatória para artistas nacionais e internacionais e por onde transitam homens humildes, jovens inquietos, estadistas, formam-se grupos, tertúlias, debatem-se idéias. Todos cabiam no espaço acanhado ``menos os fascistas e os chatos" -palavras do dono da casa.

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