São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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O herói da ciência moderna

EDUARDO SALES DE OLIVEIRA BARRA

EDUARDO SALLES DE OLIVEIRA BARRA

A Vida de Isaac Newton
Richard S. Westfall
Tradução: Vera Ribeiro
Nova Fronteira, 328 págs.
R$ 23,00

Deve ser elogiada a tradução de um livro cujo autor representa uma das principais linhagens de historiadores da ciência deste século, os ``Newtonian scholars". Com ``Never at Rest: a Biography of Isaac Newton" (Cambridge, 1980), obra da qual ``A Vida de Isaac Newton" é uma versão condensada, preparada pelo próprio autor, Westfall inseriu seu nome entre os mais respeitados comentadores de Newton. Já nos anos 70, com ``Force in Newton's Physics", ele lançou novas interpretações sobre as origens da dinâmica newtoniana que, na década seguinte, iriam promover de forma definitiva os estudos dos manuscritos alquímicos de Newton, até então ignorados pelos historiadores.
A biografia de Newton foi publicada quando as interpretações de Westfall recebiam significativa aceitação, incorporando esses elementos de suas análises, além de muitos outros relativos às atividades intelectuais de Newton (filosofia natural, matemática, teologia) e à sua vida pública e privada. Utilizando-se também dos estudos de diversos outros comentadores, Westfall soube magistralmente compô-los (muitas vezes com novas informações) e iluminá-los com sua verve interpretativa original. O resultado foi a mais completa e elaborada biografia de Newton de que podemos dispor.
Em ``A Vida de Isaac Newton", o leitor encontra relatos precisos sobre obras e acontecimentos acerca dos quais nos chegam geralmente apenas histórias anedóticas. Da famosa história da maçã aos seus envolvimentos com os negócios políticos e monetários do Império Britânico, pode-se melhor avaliar quão distorcida foi a imagem de Newton e de suas realizações, forjada pelo estilo ``culto ao herói" denunciado por Westfall (pág. 40).
O ponto alto desses relatos é o tratamento dado às polêmicas em que Newton se envolveu. Embora falte ao leitor menos informado sobre essas querelas um melhor esclarecimento das idéias que estavam em disputa (sobretudo a respeito da prioridade em havê-las formulado ou ``descoberto"), a narrativa de Westfall reproduz brilhantemente o clima acalorado dos debates, enfatizando o comportamento dos personagens envolvidos a fim de conferir-lhes uma identidade psicológica. Destacam-se as narrativas das polêmicas de Newton com Hooke sobre a ``hipótese da luz" e sobre a lei da ``atração" gravitacional e as com Leibniz sobre o que hoje chamamos de ``cálculo". Quanto ao fato de essas narrativas serem entremeadas de comentários sobre o perfil psicológico dos personagens, o que muitas vezes é feito também fora do contexto das polêmicas, é preciso advertir que Westfall não nos oferece nenhuma razão para aceitarmos que suas implicações vão muito além do prosaico.
Há, entretanto, referências veladas a outras polêmicas pouco perceptíveis aos ``não-iniciados". O fato é que, embora significativa, a aceitação das interpretações de Westfall não foi generalizada. As referências às polêmicas em torno de suas interpretações aparecem sob a forma de crítica aos que desconhecem o significado da alquimia para a filosofia natural de Newton (págs. 110-118), na datação dos experimentos com pêndulos realizados com o intuito de refutar a hipótese de um éter mecânico (págs. 146-147) e na afirmação da existência do manuscrito em que Newton demonstrara a lei do inverso do quadrado da distância para as órbitas elípticas, em 1680 (págs. 151-159).
As três referências estão estreitamente relacionadas: à medida que diminuía sua crença na existência de um éter capaz de produzir efeitos mecânicos (gravidade, coesão, magnetismo), aumentava a convicção de Newton de que ``o agente máximo da natureza" deveria ser as forças de atração e repulsão evocadas em seus estudos alquímicos. Assim, quando Hooke lhe sugeriu explicar o movimento orbital dos planetas ``em termos de uma atração para o centro", em 1680, Newton estava ``pronto a abraçar" a idéia de ``uma ação a distância semelhante às atrações e repulsões". Prova disso seria que ``tanto nas cartas a Hooke quanto em sua demonstração da elipse, Newton aceitou o conceito de atração sem pestanejar" (pág. 151).
A principal realização científica de Newton, a teoria da gravitação universal, exposta nos ``Philosophiae naturalis principia mathematica" (1687), é fruto dessa sua ``rebeldia" contra a ``filosofia mecânica convencional", de modo que o conceito central dos ``Principia" é justamente o de ``atração" (págs. 190 e 192). Mas Westfall observa que essa transposição requereu também um esforço para adequar os ``conceitos alquímicos" a um campo (a mecânica celeste) para o qual Newton havia estabelecido padrões de rigorosa precisão matemática: ``Enquanto os mecanismos invisíveis da filosofia mecânica ortodoxa, como os vórtices de Descartes, haviam desviado continuamente a atenção da precisão quantitativa para as imagens pictoriais, a nova concepção newtoniana da ação a distância exigiu um tratamento matemático" (pág. 167).
Algumas questões podem ser levantadas a propósito da interpretação de Westfall, em especial quando consideramos o período de 1679-1685 em que Newton formulou suas idéias acerca da gravitação universal. Há um reduzido número de fontes diretas que poderiam ``provar" algo acerca das mudanças que ocorreram em seus pensamentos. Assim, uma interpretação dificilmente poderá ser considerada mais verossímil que as demais. O que se deve esperar de uma ``boa" explicação é apenas que ela permita dar alguma inteligibilidade às poucas evidências diretas, fornecendo as razões mais plausíveis para Newton ter formulado sua teoria e, principalmente, reivindicado sua aceitação.
Se, por um lado, Westfall submete-se à ``prova dos manuscritos", integrando em sua explicação o vultoso número (mais de um milhão!) de palavras manuscritas dedicadas à alquimia, por outro, ele deixa de oferecer explicações sobre um outro manuscrito, intitulado ``De gravitatione", cuja datação provável coincide com o início dos estudos alquímicos de Newton, em 1669.
Nas únicas duas vezes em que se refere ao ``De gravitatione" (págs. 165 e 258), Westfall deixa de mencionar que, ao lado das críticas às noções cartesianas de espaço, corpo e movimento, Newton adota várias outras noções também oriundas da física cartesiana, como os vórtices celestes, a causa da gravidade terrestre e, particularmente, o ``conatus" (esforço, tendência) dos corpos que giram para afastarem-se do centro de seus movimentos. Westfall admite a influência desta última noção cartesiana nos estudos de juventude de Newton (págs. 46-51), mas dirá que, a partir de 1679, ``a própria linguagem dos `esforços' era um passo em direção a uma explicação completamente diferente" daquela do mecanicismo cartesiano (pág. 143).
O problema é que, ao superestimar a influência da alquimia no pensamento de Newton, Westfall acaba por menosprezar a importância dos ``Principia philosophiae" (1644), de Descartes. Admitir a importância dos ``Principia" de Descartes implicaria, entre outras coisas, reconhecer que Newton não poderia ter aceito o conceito de atração ``sem pestanejar". Não estamos propondo que a ``influência" da alquimia seja meramente substituída pela dos ``Principia" de Descartes. Talvez o que precisasse ser revisto é o próprio uso da noção de ``influência" na historiografia da ciência.
A edição de ``A Vida de Isaac Newton" faz justiça ao significativo trabalho de seu autor. É extremamente bem cuidada, incluindo ilustrações e um índice onomástico bastante completo. O texto em português possui uma fluência admirável e pouquíssimas passagens mereceriam ser revistas. Sugeriríamos apenas que o leitor fosse informado que ``esforço", ``tendência" e, ao menos uma vez, ``impulso" (pág. 48) são todas traduções de uma mesma palavra em latim (``conatus") ou em inglês (``endeavour"). Além disso, já temos muitas versões para o ``hypotheses non fingo" de Newton (``não construo hipóteses", ``não invento hipóteses"), por que aumentá-las com ``não fantasio hipóteses" (pág. 289)?

EDUARDO SALLES DE OLIVEIRA BARRA é professor de filosofia da Universidade Estadual de Londrina (PR) e autor da dissertação ``Omnis Philosophiae Difficultas: o Conceito de Força na Filosofia Natural de Newton" (Filosofia-USP, 1994).

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