São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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A saga de um herói moral

LUIS HENRIQUE LOPES DOS SANTOS

Wittgenstein - O Dever do Gênio
Ray Monk
Tradução: Carlos Afonso Malferrari
Companhia das Letras, 572 págs.
R$ 33,00

Nos últimos aforismos do ``Tractatus Logico-Philosophicus", Wittgenstein esboça os contornos de uma concepção da moralidade a que sempre se manteve fiel, sob a forma hierática e impessoal característica de sua primeira filosofia ou na veia ``antropológica" (para usar sua própria palavra) de sua segunda filosofia.
O problema do sentido da vida, Wittgenstein não se cansa de repetir, não é daqueles para os quais se trata de descobrir soluções. Sua solução é sua dissolução e, precisamente por isso, os poucos para quem esse sentido se fez claro nunca puderam dizer em que ele consiste. O que confere sentido e valor a todos os fatos da vida não pode ser também um fato da vida, algo que se descrevesse numa fórmula e de que se pudesse dispor, de uma vez por todas, como padrão e garantia de uma boa vida.
Isso não significa, porém, que seja exterior aos fatos da vida, um fato extraordinariamente importante de um outro mundo. Pelo contrário, ele apenas se mostra nos fatos a que confere sentido e valor, como sua forma moral, que os converte, de acontecimentos naturais, entre outros, em fatos de uma vida humana. A essa forma, acostumamo-nos a aludir por meio da palavra ``espírito"; a essa conversão, por meio da palavra ``cultura". Viver a boa vida é viver a vida autenticamente humana, emprestar aos acontecimentos do percurso da sobrevivência natural a forma espiritual, fazer deles momentos de uma cultura.
Sobre o pano de fundo dessa maneira de ver e sentir a dimensão ética da vida, Ray Monk compõe a biografia do filósofo como a saga interior de um herói moral, integralmente empenhado na busca do sentido inefável da própria vida. Como convém a um herói, Wittgenstein afronta todos os perigos da aventura, narrada com meticulosidade nas mais de 500 páginas de ``O Dever do Gênio", aferrado à convicção fundamental de que, no fim das contas, essa busca é a própria constituição do sentido perseguido, a perseguição é seu próprio alvo. E, se cabe falar em perseguição, é porque a vida vivida com sentido, a vida autêntica, é uma conquista sempre precária, ameaçada a cada passo pela opacidade com que as ações humanas se apresentam a seus próprios agentes.
Assim é que, segundo Monk, nosso herói vem a definir sua missão no mundo em termos de um circuito bipolar, irremediavelmente atormentado, cujos polos negativo e positivo são a tentação permanente da alienação de si e a redenção pela autenticidade. A serviço dessa missão, põe todos os seus pensamentos, palavras e obras -inclusive, e principalmente, os filosóficos.
O propósito nuclear do livro é revelar ``as conexões entre as preocupações éticas e espirituais que dominaram sua vida e as questões filosóficas aparentemente remotas que dominam sua obra". De um modo ou de outro, a relação de Wittgenstein com a filosofia articula tematicamente os vários atos em que Monk recorta o drama moral.
Na Viena do fim do século, o pequeno Ludwig vive num ambiente de conforto material e refinamento cultural. De temperamento dócil, amolda-se às expectativas do pai, próspero homem de negócios, e prepara-se para uma carreira adequada ao espírito dos tempos modernos. Frequenta escolas técnicas e, aos 19 anos, é enviado a Manchester, a fim de especializar-se em engenharia aeronáutica. Ocorre, então, a grande transformação. O projeto não é vivido como autenticamente seu; cumpri-lo seria abdicar do direito e do dever de conferir sentido à própria vida. A leitura dos ``Principia Mathematica" de Russell indica o caminho da vida autêntica: a filosofia.
Em 1911, Wittgenstein muda-se para Cambridge e torna-se o pupilo dileto de Russell. A descrição de suas relações turbulentas com o mestre, exaurido pelo esforço de elaboração daquela obra monumental e descrente de sua capacidade para empreender um novo trabalho criativo, constitui um dos momentos mais saborosos do livro. Os vínculos vão pouco a pouco se esgarçando e Wittgenstein torna-se o que nunca mais deixará de ser: um pensador solitário. ``Meus escritos", disse uma vez, ``são todos conversas comigo mesmo". É solitariamente que prepara sua primeira grande obra, o ``Tractatus", inicialmente planejado como um livro sobre os fundamentos da lógica.
Quando se deflagra a Grande Guerra, alista-se no exército austríaco e insiste em ser enviado à frente de batalha -não por dever patriótico, é claro, mas por dever consigo mesmo. A vida não vale ser vivida a qualquer custo, só a proximidade da morte pode corroborar a autenticidade da vida. É nesse momento, segundo Monk, que a filosofia adquire, para Wittgenstein, a tonalidade ética que exibirá em todas as fases de seu pensamento. É nesse momento que a atividade filosófica é alinhada com as experiências estética e religiosa no campo dos modos éticos, em contraposição ao modo científico de ver, sentir e pensar o mundo e a vida.
Ironicamente, o inspirador do Círculo de Viena revela-se o crítico mais implacável da ``filosofia científica", um disparate só comparável em inautenticidade a uma doutrina religiosa. O propósito da filosofia não é representar, no modo sistemático da explicação, o desenrolar do curso dos fatos, e assim permitir que nele intervenhamos com eficácia, mas nos fazer reencontrar, na armação formal de nossa imagem do mundo e de nossas ações, as fontes originárias de seu próprio sentido. O que podemos e devemos esperar da filosofia não é que nos diga o que é o mundo e o que devemos fazer no mundo para adequá-lo a nossa vontade, mas, finalmente, que nos mostre o que somos e o que fazer de nós mesmos.
Selado o pacto entre lógica e ética, Wittgenstein conclui o ``Tractatus". Convencido de que o livro continha a chave para a solução de todos os problemas filosóficos importantes, desinteressa-se da filosofia. Inspirado por Tolstoi, nutre a ilusão de que poderia viver a vida autêntica longe do mundo burguês, na companhia das ``pessoas simples e comuns". Durante os primeiros anos 20, trabalha como professor primário em vilarejos do interior da Áustria. O fracasso da experiência é a vitória final da filosofia: tanto quanto a ambição e a vaidade, marcas da vida burguesa, a dependência em relação às necessidades básicas da sobrevivência, de que padecem as ``pessoas simples e comuns", entorpece o espírito e o condena à alienação. Apesar dos pesares, é preciso voltar ao mundo da cultura e nele resignar-se a empreender o combate tenaz às tentações, interiores e exteriores.
Na segunda metade do livro, Monk acompanha de perto a sucessão de movimentos pendulares que caracterizam os últimos 20 anos da vida emocional e intelectual de Wittgenstein, em que se manifesta o caráter ambivalente de sua inserção na trama das relações humanas. Por um lado, sua concepção da vida autêntica inclui, como nota essencial, a auto-suficiência. A responsabilidade pelo valor que se confere à própria vida é pessoal e intransferível, não compartilhável com nada e com ninguém. O que se deve fazer de si mesmo para que se viva a boa vida é algo que não pode, por definição, depender do que tenha acontecido, aconteça ou venha a acontecer no mundo.
Por outro lado, os caminhos pelos quais envereda a segunda filosofia de Wittgenstein desembocam na percepção de que toda atividade espiritual se enraíza no solo de uma cultura, milenarmente instituída pela humanidade, de modo que nenhuma obra do espírito pode valer como tal se não tiver a história natural dessa instituição como seu horizonte.
Essa ambivalência fundamental acarreta a coexistência permanente de anseios conflitantes. Na dimensão afetiva, o amor e a amizade são vividos como empreendimentos espirituais tão intensos e eticamente importantes quanto a filosofia. Ao mesmo tempo, são percebidos como empreendimentos de alto risco, fatores incontroláveis de interferência na perseguição penosa do domínio de si. Na esfera filosófica, compartilhar idéias aparece alternadamente como uma necessidade e uma impossibilidade, especialmente numa época de trevas, em que nenhuma esfera da cultura parece imune à infiltração insidiosa dos modos científicos e tecnológicos de pensar e agir.
Delineia-se assim o retrato de uma personalidade torturada por um sentimento profundo de estranhamento, em relação a si mesmo, aos outros e a seu tempo. Na exposição desse retrato, Monk, fiel ao espírito do retratado, evita o quanto pode a heresia de propor explicações e interpretações, como que deixando que a enorme massa de documentos, confissões e depoimentos mobilizada fale por si própria. O resultado é um texto contido, literariamente austero, a que não faz justiça uma tradução desajeitada e imprecisa, em que o número de erros cometidos e liberdades tomadas é bem maior que o inevitável.

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