São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Uma religião brasileira

OSCAR CALAVIA SÁEZ

Las Formas de los Dioses - Categorias y Clasificaciones en el Candomblé
Fernando Giobellina Brumana
Servicio de Publicaciones, Universidad de Cádiz, 437 págs.

Os estudos sobre candomblé padeceram sempre de um exagero óptico: era a voz da ciência nos explicando raros fenômenos à beira do patológico, ou a voz de um converso pretendendo extrair o âmago do culto. Demasiado longe, demasiado perto. Passamos de manuais sobre coisas tão amplas como ``as religiões africanas no Brasil" a monografias sobre um gesto ritual, uma figura do panteão. Mas esse pêndulo raras vezes se deteve no centro.
Fernando Giobellina Brumana não é um cientista; também não é filho de santo, ogã ou africano. É um antropólogo com um trabalho de campo considerável em terreiros de candomblé em São Paulo e uma experiência anterior com a umbanda (e um livro publicado a respeito: ``Marginália Sagrada", de 1989). São muitos os sentidos em que seu livro sobre candomblé pode ser qualificado de ``clássico". Em primeiro lugar, porque é fiel a recursos outrora comuns na antropologia, como o trabalho e o caderno de campo e a comparação controlada. Num sentido mais ``plástico", porque, como nas artes que costumamos chamar de clássicas, o assunto é tratado de corpo inteiro, na escala apropriada para nos fazer ver a sua organização interna e os seus limites.
Já no começo o autor critica toda uma escola interpretativa que busca no candomblé ``significados" -obviamente africanos; que preenche com viagens ao Golfo de Benim todas as ``lacunas" que descobre e exclui do seu recorte qualquer ruído, como as aderências católicas ou umbandistas. Só a esse preço é possível apresentar como uma ``religião africana" o candomblé, formado como tal no Brasil, num contexto decerto afastado do africano e a partir de elementos que na África não constituíam sistema. O candomblé é, com todas as letras, uma religião brasileira: os seus adeptos vivem num mundo em que os espíritos de umbanda, a cosmologia kardecista ou a teologia cristã estão ao alcance da mão -usam deles, aliás, fora do terreiro e dentro dele.
Essa crítica não impede que o autor reconheça o papel que o ``africanismo" e seus mentores intelectuais, encabeçados por Bastide, tiveram na conformação atual do candomblé e na definição do seu lugar social. Também não impede que um livro, que parte criticando a fábula da ``pureza nagô" -uma pureza empírica e arbitrária-, acabe marcando distância também com respeito ao relativismo representado por estudos como os de Fry ou Góis Dantas: apesar dessa história de mestiçagem e transgressão, pode-se definir, sim, um candomblé puro, na medida em que o campo religioso brasileiro, que favorece tal comércio entre as religiões, o equilibra com um cuidadoso cultivo das diferenças.
Há um modelo -de fidelidade à ``raiz"- que é objeto de contínua preocupação do povo de santo. Se não há uma filosofia oculta ou uma ortodoxia no candomblé, há sim uma ortopraxe: uma exigência de fazer segundo as normas, e um cuidado de isolar simbolicamente as práticas que, embora acolhidas dentro do sistema simbólico próprio, continuam a ser reconhecidas como outras. Digamos que, à negritude sociológica e nativa de Bastide, se opõe uma negritude lógica e intencional que bem pode instalar em São Paulo sua nova Roma.
O livro conta com níveis muito diversos de elaboração, da anedota à fórmula. Os apêndices ilustram temas tratados em cada capítulo, sugerem extensões do estudo ou revisam alguns pontos polêmicos da bibliografia especializada -sirvam como exemplo alguns dos raros mitos sobre os orixás, ou os saborosos casos de idílio com/entre eguns, ou a discussão sobre o tema do ``agente independente" que alude ao famoso babalaô Martiniano do Bomfim. Há o relato detalhado de todo um ciclo de iniciação e aproximações aos temas que constituem o limite de informação do candomblé, a saber as artes adivinhatórias e o culto aos mortos -os eguns-, em que o autor evita a tentação esotérica e prefere cercar com cuidado o lugar do secreto no culto e indicar o seu papel estratégico.
O panteão do candomblé ocupa o centro e o título da obra: orixás, exus e eguns -deuses, outros, mortos, e as suas fronteiras em contínua mudança. Várias ordens se entrecruzam aqui: a do conjunto politeísta, a das qualidades de cada orixá -sutilezas ou escolástica do candomblé. Enfim, chegamos ao orixá individual, que nasce, ou é feito, em cada iniciado. Longe da plural alienação que muitas vezes se identificou às religiões ``de transe", o que o estudo do candomblé desvenda é um processo de individuação peculiar, que cada filho de santo atravessa e que não postula um indivíduo abstrato, mas simbolicamente definido. O candomblé, que dispensa as relações familiares, impede, com um jogo de transgressão/abstinência sexual, que alguém as reproduza no seu interior. Lá dentro, cada um é cada um, indivíduo sem individualismo.
Destaquemos também a descrição da casa de santo, com seus três pólos -a cumeeira, encarnando a unidade da casa e a continuidade do culto, o roncó, onde convive a pluralidade dos deuses, e a casa dos exus, dobradiça de uma fronteira dual que separa também o culto no seu conjunto do exterior. Mas o triângulo fundamental do livro é aquele em que esse espaço ritual se relaciona com o exterior: casa de santo, casa doméstica e cidade. A tensão entre um estigma moral público e uma ascese ritual privada cria as fronteiras de fora e as boas maneiras de dentro; a (homo)sexualidade joga um papel-chave na organização de grupos de culto em que autoridade doméstica e autoridade ritual são ao mesmo tempo inseparáveis e incompatíveis.
Vale a pena destacar que estamos resenhando um livro claro, que não recorre aos prestígios do mistério: numa religião muito mais apolínea do que parece, aspectos sensacionais como o transe ou o sacrifício cruento têm um lugar importante mas bem circunscrito. A especificidade do candomblé se entende assim não em função de práticas exclusivas, mas da posição que ocupa em relação às outras opções do campo religioso ``subalterno" -o pentecostalismo, o espiritismo kardecista e a umbanda, que resolvem em formas diferentes tensões e mitos comuns.
Há do começo ao fim uma subordinação da semântica à sintaxe, convictamente estruturalista. Um estruturalismo, diga-se de passagem, mais ``sociológico" que o de Lévi-Strauss -sem sua inclinação ao cognitivo ou ao histórico- e apoiado em metáforas topológicas: o centro, a margem, os atalhos, o campo -aos quais nunca faltam referentes concretos na paisagem urbana. Há quem identifique estruturalismo e tautologia. A melhor resposta -glossando um certo texto de Brecht- pode ser uma lista das coisas a que este livro não dá resposta. O autor enumera algumas no começo e no final do livro: uma delas é o que poderíamos chamar a questão da ``etnociência" no candomblé -na sua manipulação de elementos naturais e especialmente na sua rica etnobotânica. Outra, a variedade dos modos de inserção das religiões de raiz africana na cultura das distintas nações americanas atuais. O exemplo -``vazio"- dos Estados Unidos, grande país escravagista sem grandes cultos ``afro", se faz talvez mais instigante na atualidade, quando pais e mães de santo brasileiros e santeros cubanos se disputam a primazia num setor religioso em expansão.
Estas perguntas são possíveis porque o livro opta pela inteligibilidade: o candomblé é de hoje, e seu mistério não é incompatível com o sistema. Os estudos de religião, nos últimos anos, têm perdido centralidade na antropologia brasileira -e esta só pode com isso perder vigor e rigor. Esperemos que -com trabalhos desta qualidade- o processo reverta: com um discurso político semanticamente plano e um sincretismo global na cultura, a religião, aqui como em outras partes, vai ficando quase como único refúgio desses contrastes sem os quais é tão difícil pensar.

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