São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Nós e o samba

MARINA DE MELLO E SOUZA

O Mistério do Samba
Hermano Vianna
Jorge Zahar Editor/Editora UFRJ, 193 págs.
R$ 18,00

Em ``O Mistério do Samba", Hermano Vianna busca desvendar o processo por meio do qual o samba passou de ``ritmo maldito", perseguido pela polícia, a ``música nacional" (pág. 29) -processo nunca esclarecido, apesar de apontado por vários estudiosos e similar a outro, no qual a mestiçagem passou de principal causa de nossos males a garantia de nossa originalidade cultural. Apontando esse paralelo, o autor expõe o fio condutor da sua análise, onde relaciona a constituição do samba em ritmo nacional por excelência ao sucesso das idéias de Gilberto Freyre.
Com abordagem extremamente original e explorando um episódio específico como paradigma de sua argumentação, o autor dá uma contribuição importante ao antigo e diverso debate acerca da identidade do brasileiro. O episódio é um encontro entre jovens intelectuais, então preparando-se para elaborar suas interpretações do Brasil, e um grupo de compositores populares, boêmios cariocas, que também davam contribuição definitiva à cultura brasileira em outra esfera: a da criação musical.
Querendo organizar uma noitada para Gilberto Freyre, que em 1926 visitava o Rio pela primeira vez, Prudente de Morais Neto marcou um encontro num café da rua do Catete, cujas portas foram fechadas para a ocasião, com os músicos em evidência na época, entre eles Pixinguinha, Donga, Patrício Teixeira, Nelson Alves e Sebastião Cirino, autor do samba de maior sucesso daquela temporada. Na ``noitada de violão" também estava presente Sérgio Buarque de Holanda, cujo ``Raízes do Brasil" apareceria em 1936, três anos depois de ``Casa Grande e Senzala".
Este encontro, onde jovens intelectuais preocupados em entender seu país partilharam uma noite de divertimento com músicos que reinventavam ritmos, sem saber que criavam naquele momento algo definitivo, é tomado pelo autor como alegoria da ``invenção de uma tradição", ``aquela do Brasil Mestiço, onde a música samba ocupa lugar de destaque como elemento definidor da nacionalidade" (pág. 20). O encontro simboliza muitos outros, principalmente aqueles relacionados ao intercâmbio entre o popular e o erudito e entre o branco e o negro.
Preocupado em entender, ou pelo menos apontar, o processo por meio do qual o samba se tornou símbolo maior da identidade nacional no contexto dos anos 30 deste século, Hermano Viana toma Gilberto Freyre como eixo de sua análise, fazendo questão de esclarecer que, em sua obra, este pouco falou sobre música -e eu lembro que foi Mário de Andrade quem mais tempo dedicou às questões relativas à nossa identidade, tendo inclusive na música o seu foco principal. Entretanto, com bem conduzida análise, o autor faz-nos esquecer que Gilberto Freyre é pernambucano e quase nunca falou de música. E nos convence que a transformação do samba em signo maior da nacionalidade brasileira está em perfeita sintonia com a interpretação que aquele autor faz do Brasil enquanto país mestiço, contemporizador dos contrários, onde reina a democracia racial e as particularidades regionais são dissolvidas na força de uma alma nacional homogênea.
Mário de Andrade buscou nas manifestações folclóricas, principalmente as musicais, um substrato unificador que amalgamasse as diferenças regionais, tentando dar conta da enorme diversidade cultural do país e procurando um caráter que nos identificasse internamente e perante o mundo. Contudo, esta tentativa andradiana de construir uma identidade nacional é mencionada apenas de passagem por Hermano Viana, que nos mostra uma outra possibilidade, vitoriosa na prática: a construção da identidade a partir do samba carioca, visto sob a ótica da homogeneização étnica e cultural proposta por Gilberto Freyre.
Tanto na proposta de Mário de Andrade como na extraída de Gilberto Freyre, a identidade nacional é construída a partir da interação entre o erudito e o popular e com a contribuição de diferentes fontes étnico-culturais. Hermano Viana percebe que a discussão sobre identidade brasileira passa necessariamente por um quadro de complexas e múltiplas interações entre pessoas de diferentes níveis sociais, de diferentes cores e heranças culturais, por ele chamado de transculturação. O conceito, aqui tomado de Fernando Ortiz, está, com variações de nome e definição, no cerne das análises atuais acerca da cultura popular e suas relações com a dita cultura erudita. Mas, antes de se difundir tão amplamente, Mário de Andrade já pensava nessa direção, e a incorporação de seus textos poderia ter tornado ainda mais rica a análise empreendida por Hermano Viana.
Outro símbolo muito forte dessa mistura toda é Carmen Miranda, portuguesa de nascimento, branca, cantora de samba, que elegeu o traje de baiana como vestimenta de suas apresentações, buscando representar melhor o brasileiro. Orgulhando-se de ter ``o Brasil em cada curva de seu corpo" (pág. 130), foi transportada do cassino da Urca para a Broadway e de lá para Hollywood sendo, nessa trajetória, triturada pela engrenagem do ``show business". Transformada em caricatura da brasilidade, recebeu o repúdio do público que mais prezava, o de seu país, pois deixou de lado algo fundamental na constituição de símbolos nacionais -a ``autenticidade".
A partir dos anos 30 consolidou-se a idéia do que seria o autêntico e verdadeiro samba -e a verdadeira identidade nacional- sob o projeto unificador dos revolucionários. Esse ``samba autêntico", na verdade já diferente daquele tocado na década de 20, passa a ter na escola de samba o seu lugar privilegiado e se liga a ``um projeto de modernização e nacionalização da sociedade brasileira" (pág. 127). Mas essa consolidação é apenas da idéia de samba enquanto música popular brasileira por excelência, continuando a realidade a viver o seu processo histórico de transformações, identificadas no livro com base nas mudanças sofridas pela música, mesmo sob protesto de alguns puristas.
Introduzindo, no final do livro, uma discussão sobre música afro-baiana e rock brasileiro -que, como nos explica no início, era o tema primeiro de sua pesquisa, até se deixar envolver por aquele encontro paradigmático entre jovens intelectuais e compositores populares-, frisa as diferenças que separam do samba carioca estas criações, pois elas não pretendem representar o país como um todo. Identifica, ao contrário, uma multiplicidade de grupos e projetos culturais indiferentes a qualquer sentimento unificador e inseridos num contexto onde a valorização do ``outro" ganha terreno sobre as propostas uniformizantes.
Diante desse panorama, Hermano Viana abre duas possibilidades para o debate acerca da identidade brasileira: a manutenção de tendências homogeneizantes, com a escolha de símbolos globalizadores facilmente aceitos dentro e fora do país, ou a valorização da multiplicidade, substituindo o ``paradigma mestiço" e apresentando uma nova imagem de nós mesmos, num mundo que paradoxalmente valoriza cada vez mais a diferença, enquanto as barreiras culturais são abolidas e as linguagens passíveis de serem entendidas por todos.

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