São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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As origens de Darwin

NELIO BIZZO

Darwin: A Vida de um Evolucionista Atormentado
Adrian Desmond e James Moore
Tradução: Gustavo Pereira, Hamilton dos Santos e Maria Alice Gelman Geração Editorial, 742 págs.
R$ 45,00

Adrian Desmond, um inglês circunspecto de gestos comedidos, profundo conhecedor da história vitoriana em geral e das sociedades científicas em particular, nunca pensara seriamente em escrever uma nova biografia sobre um cientista como Charles Darwin (1809-1882). Cientistas polêmicos normalmente são detestados antes mesmo de serem conhecidos e isso era motivo suficiente para afastá-lo da empreitada. Um encontro casual com James Moore, um americano extrovertido radicado na Inglaterra, respeitável ``Darwin scholar", mudou o curso dos acontecimentos. Pensaram em escrever uma biografia diferente, um ``clip" impresso cheio de imagens mentais, profundamente humano sem ser apelativo, dirigido ao leitor comum que não conhece genética de populações nem biogeografia. No entanto, uma biografia que fosse tudo menos superficial, contextualizando o pensador em sua época, no plano social, mas também em sua família, sua esfera de relações mais próximas, no plano individual.
James Moore começou o manuscrito pelo fim, detalhando os últimos dias de Darwin, sua lenta agonia que o levaria à morte. Um homem enfraquecido, escrevendo seu último e derradeiro livro, que tratava justamente dos vermes, aquelas criaturas desprezíveis que haveriam de chafurdar-lhe o cadáver em pouco tempo ``a cinco ou seis palmos de profundidade, mesmo aqui em Downe", a cidadezinha onde morava e onde queria ser enterrado. Seu lugar já estava reservado ao lado do irmão mais velho, o querido Erasmus, um médico sem clínica que morrera havia pouco tempo, vítima do ópio e do ócio.
Desmond, por outro lado, foi direto ao seu assunto predileto, escrevendo sobre as sociedades científicas e os primeiros anos de Darwin. Aqui apareceriam os tons polêmicos do livro, verdadeiro documentário cinematográfico, ``technicolor" literário digno de uma Lina Wertmller. Os dois autores se encontraram lá pelas tantas, mexeram promiscuamente no manuscrito um do outro, uniformizaram o texto, polvilharam metáforas finas e delicadas, refinaram o estilo, capricharam nos detalhes, nas citações bibliográficas e no rigor das expressões originais, mesmo que não estivessem entre aspas.
Ao abrir o livro, reorganizado em cronologia linear, encontramos odores bucólicos de uma infância florida, a atenção das irmãs ao pequeno órfão de nove anos, o olhar severo de um pai que temia criar um desocupado parasita, ciumento da atenção das filhas, orgulhoso pelo mais velho que o acompanhava na profissão. O enorme doutor Robert Waring Darwin tinha certeza de que Erasmus conservaria o prestígio da família na profissão. Mais adiante, ouvimos o rufar dos tambores, tropas marchando para a estação de trens próxima à casa dos Darwin recém-casados, soldados embarcando para Manchester, onde fuzilariam trabalhadores rebeldes que estavam a exigir o direito de voto. Os protestos das ruas, o cheiro da pólvora, a sufocante poluição da fumarenta Londres, a competição aberta e desenfreada entre agentes econômicos, os embates entre liberais e conservadores, as ações incendiárias dos radicais, as expressões de horror aos privilégios do clero anglicano que monopolizava as universidades e o saber, a luta pelo fim da taxação do trigo importado, os investimentos de Darwin em ações das companhias ferroviárias, o aprofundamento da divisão social do trabalho nas fábricas de porcelana fina da família, os milhares de ingleses mortos na guerra da Criméia, o triunfo do Império Britânico sobre os turcos no além-mar.
Como tudo isso poderia ter deixado de influenciar um espírito nobre, um pensador privilegiado, um investidor do mercado financeiro nascente, um proprietário de terras preocupado com seus rendeiros e herdeiros, um ferrenho opositor dos métodos de controle da natalidade, um sobrinho querido de um influente deputado, um cidadão orgulhoso do progresso da pátria e do futuro da nação?
Concordar com a influência das idéias dominantes de um tempo sobre as elaborações científicas que ali brotaram e foram aceitas pode parecer uma tentativa de diminuir a genialidade de seus pensadores. Quem quer que credite as idéias de Darwin ao contexto social no qual estava imerso deve estar disposto a enfrentar a cara feia dos leitores mais exigentes e dos críticos de plantão. No entanto, caberia indagar a razão do mesmo estranhamento não ocorrer quando analisamos uma obra literária ou artística. Os escritores, os artistas e as obras que produziram são comumente interpretados à luz da sociedade na qual viveram. Nem mesmo o mecenato consegue diminuir a importância das obras de um artista, enquanto expressões espontâneas e legítimas de uma época.
Quantas vezes os nobres se fizeram reproduzir em telas a óleo? Isso transforma pintores geniais como Goya em meros mercenários? O mesmo poderia ser dito dos temas sacros que forram a Capela Sistina, de Michelangelo e Botticelli? Poderemos então, pretendendo o extremo oposto, dizer que Goya, apesar de pintor da corte de Carlos 4º, nunca permitiu que sua condição social influenciasse seu trabalho? Ou que Michelangelo e Botticelli eram simples devotos tementes a Deus? Se as obras artísticas não perdem seu brilho quando reconhecemos o quanto devem ao meio físico e social no qual emergiram, até pelo contrário, por que devemos considerar uma ofensa a um cientista imputar-lhe uma inspiração que não seja outra coisa senão terrena?
Sem pretender diminuir ou questionar a obra desse grande cientista, Desmond e Moore enveredam pelas trilhas de seu raciocínio, manifestação da melhor história das idéias de Arthur Lovejoy. A reconstrução literária de um de seus mais delicados artefatos teóricos é um bom exemplo. Se o sucesso de industriais dependia da eficiência das oficinas de suas fábricas, por que não pensar numa natureza como uma grande e moderna fábrica de espécies? A especialização dos operários, sua garantia de ocupação, teria correspondência com a especialização ecológica das novas espécies. Darwin conhecia os economistas burgueses, como Smith e Ricardo, e tinha vínculos familiares que o tornavam um grande admirador dos industriais e de seu ideário liberal.
Os antigos artesãos que fabricavam pregos haviam sido substituídos pela eficiência dos operários especializados. Poderia a natureza ir contra os princípios da eficiência? Estaria ela acorrentada à ordem feudal, estática e empedernida, obedecendo leis sem sentido, atrelada à autoridade e não à competência, acomodada com a produção? Darwin sabia que a metáfora não poderia transformar-se em construto literal sem que sua legitimidade fosse conspurcada. Tomou então emprestada a expressão ``divisão de trabalho", não dos economistas burgueses, o que poderia não ser bem recebido, mas sim de renomado zoólogo, Milne-Edwards, que a empregava no estrito domínio de sua especialidade.
A resposta veio na forma do ``princípio da divergência", que coroava os eficientes com o sucesso reprodutivo. Aqueles que se especializassem, que ocupassem um nicho

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