São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Homem público, interesse privado

GUENTER FRANCISCO LOEBENS

É fácil provar o descaso dos últimos governos em relação aos povos indígenas. Basta lembrar os prazos de cinco anos fixados no Estatuto do Índio e na própria Constituição para que todas as terras indígenas fossem demarcadas e que são simplesmente desconsiderados e não cumpridos. Esse descaso provoca a invasão dessas terras, custa muitas vidas e força os povos indígenas a viverem em um estado permanente de violência.
Fernando Henrique Cardoso assume a presidência tendo pleno conhecimento da gravidade da situação e sabendo que precisa agir com rapidez na demarcação das terras e na proteção dos povos indígenas. Percebe, no entanto, que há grandes interesses econômicos em jogo e que esses interesses são defendidos por grupos que sustentam seu governo. No contexto da reforma constitucional, isso se torna um dilema para o presidente, que por um lado quer zelar por sua imagem e por outro precisa atender seus aliados. É nesse momento que ele opta por satisfazer os que lhe dão sustentação e em enganar os índios, seus aliados, simpatizantes e aqueles que lutam pelos direitos humanos e pelas minorias. Prefere salvaguardar os interesses privados em detrimento do seu papel de defesa do interesse público.
É coerente, portanto, com a lógica neoliberal. A oportunidade de uma saída que não torne tão evidente essa sua opção surge com a discussão pelo Supremo Tribunal Federal da Constitucionalidade do Decreto 22/91, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, em mandado de segurança impetrado pela empresa Sattin Agropecuária e Imóveis contra a demarcação da área indígenas Sete Cerros, no Mato Grosso do Sul.
O ministro da Justiça, Nelson Jobim, onipresente, trata, pois, de se antecipar ao STF e dar o veredito pela inconstitucionalidade do decreto. É aplaudido por muita gente, menos pelos índios que começam a sentir na pele as consequências do posicionamento do ministro com o aumento da violência e das invasões em suas terras.
A medida em que as reações pela manutenção do decreto por parte dos povos e organizações indígenas se fazem sentir, Jobim usa seu conhecimento jurídico e se lança numa cruzada em defesa da opção do governo de dividir sua responsabilidade na definição dos limites das terras indígenas com os interesses privados. Não consegue, no entanto, evitar os protestos em nível nacional e internacional. O desgaste é inevitável e a mudança do Decreto 22/91 que o governo já pretendia fazer há seis meses não se concretiza até hoje.
Nesse contexto não há como não interpretar a nomeação de Márcio Santilli, membro de uma ONG que atua no campo indigenista, para presidente da Funai, como mais uma tentativa do governo em criar condições políticas favoráveis para mudar o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas. Na introdução da figura do contraditório aparece a fixação de um redutor das terras indígenas e um instrumento de barganha com os interesses privados. É uma tentativa de calar os índios, as entidades de apoio e a comunidade internacional sem precisar alterar o curso de sua pretendida política indigenista. É hora, por isso, de fazer exatamente o contrário do que o governo pretende e nos manifestar de forma mais contundente em defesa dos direitos dos povos indígenas.

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