São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
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Devido ao dolo

JOSUÉ MACHADO
A NOTÍCIA DE JORNAL DUAS VEZES TRÁGICA FOI A SEGUINTE:

"Uma pessoa morreu devido a um atropelamento ocorrido às 17h ... etc. No parágrafo de baixo, a indicação do nome do motorista que apostava corrida na rua, perdeu o controle do carro e atropelou várias pessoas. E mais informações:
"O estudante (...) foi preso em flagrante, acusado de homicídio doloso - quando não há intenção de matar.
Por que duas vezes trágica? Primeiro, porque alguém morreu num acidente provocado por um ser com QI de tico-tico. Depois, porque a forma da nota é juvenil, talvez produzida por um computador atacado por cólicas espirituais.
Quer dizer então que "uma pessoa morreu devido a um atropelamento"? Estranha forma de escrever. Nesses casos tristes as pessoas morrem atropeladas, são atropeladas. Ou será que esse computador escreve que "uma pessoa morreu devido a um assassinato"? Ou "devido a um tiro"? Ou "devido a uma guerra"? Ou "devido a um casamento"?
"Devido a" já é uma tristeza deselegante e arrivista quando substitui "por causa" ou "em consequência" numa frase quase higiênica como "ela chorou devido ao tombo". Na notícia, com a confusão entre causa e efeito, ficou pior do que juro de empréstimo de banco ou de cartão de crédito.
Discutível também foi o computador XPTO não ter registrado o nome da pessoa atropelada no começo da notícia, e sim no penúltimo parágrafo da nota de 40 linhas. Não faz mal. Pior ter revelado que o atropelador foi "acusado de homicídio doloso - quando não há intenção de matar". Pequeno engano. Doloso é crime intencional. Dolo é a ação praticada com a intenção de violar o direito alheio. Melhor não dar exemplos políticos porque a coisa iria longe.
O que o computador definiu, na verdade, foi o homicídio culposo, em que não há intenção de praticar um mal, mas imprudência, imperícia ou negligência. O homicídio culposo, portanto, é o involuntário.
Considerando tais coisas, terá essa notícia saído assim devido ao fato de alguém ter apertado as teclas de um computador doloso?

O dublê, o Céu e a Terra
Dublê é a mamãezinha querida. Muitos redatores usam a palavra "dublê" para indicar que uma pessoa tem duas atividades: a principal e outra, não necessariamente relacionadas. As vezes faz três coisas e mesmo assim merece o título de dublê, como neste trecho de uma revista:
"Dublê de cozinheiro, pastor protestante e apresentador de TV, Jeff Smith é o astro do mais popular programa culinário do mundo."
Quem será que inventou esse uso malufoso para dublê? Quem foi que começou a chamar de dublês pessoas que fazem duas ou, pior ainda, três coisas? O Juruna? O Edmundo? O Tarzã? A Chita? Não se sabe, mas passaram a repetir porque acharam que era bom. Como Deus, que no princípio criou o Céu e a Terra e viu que era bom. Mas não é bom. Não o Céu e a Terra, mas usar dublê para nomear criaturas dinâmicas ou múltiplas. Não. Não é bom.
Coisinha feia!
Por que dublê? Dublê é "pessoa que, pela semelhança com outra (ator, homem público, etc.), a substitui em determinadas circunstâncias", diz o bom Aurélio. Dublê é substituto. O mocinho tem de pular do velocípede e um dublê atlético o substitui para que ele não se arranhe todo. Essa é palavra que vem do francês "double", duplo, duplicado, dobrado, falso, dissimulado.
Conclui-se, portanto, que o Juruna, a Chita e os rapazes que brincam com a palavra por achá-la bonita estão enganados.
Pode ser que um dia dublê venha a ganhar a estranha conotação de dupla atividade, às vezes múltipla. Sabedeus.
Se viu Deus que era bom...

Ele é masculino?
Ao fazer graça com o Bráulio, o pessoal de Casseta e Planeta O chamou duas vezes, em dias diferentes, de "pênis masculino".
Conhecem eles Outro que não o masculino?
Por que O chamaram assim? Pelo que se sabe, não há hermafroditismo humano completo, isto é, seres com os dois órgãos sexuais razoavelmente desenvolvidos e aptos para o que der e vier. Nos casos esdrúxulos de hermafroditismo humano, sempre há predominância de um ou outro desses utilíssimos e festejados apêndices. Ou um funciona ou outro. Para certas atividades, às vezes nenhum.
Ele é Ele e sempre será Ele, sem a distraída classificação de masculino, feminino ou neutro. Pode eventualmente estar prejudicado, se O maltrataram, se O fizeram sofrer, se exigiram muito d'Ele, se O utilizaram indignamente, se o tempo inexorável ou as tristezas desta vida O tornaram irremediavelmente cabisbaixo.
Em condições normais de pressão e temperatura, Ele não precisa de classificações, a não ser eventuais, dependentes de Sua postura aqui e acolá.
Respeitem-nO que Ele merece por muito que fez pela humanidade.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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