São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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Viagem onírica ao México

Artaud é novo personagem de Silviano Santiago

MANUEL DA COSTA PINTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Silviano Santiago é autor de alguns dos livros mais experimentais da literatura brasileira -como ``Em Liberdade" (Paz e Terra, 1981) e ``Stella Manhattan" (Nova Fronteira, 1985).
Em ``Viagem ao México", que será lançado pela Rocco no próximo dia 23, ele retoma os dispositivos estilísticos que fizeram de sua obra um marco do pós-modernismo literário: o diálogo com outros textos ou autores -nesse caso, o escritor francês Antonin Artaud- no interior de uma narrativa que se curva sobre si mesma, fazendo da própria tessitura narrativa o principal tema de seus romances.
``Viagem ao México" é um romance que segue Artaud em seu périplo onírico -ainda que historicamente real- rumo ao México dos índios taraumaras e das experiências com o peiote.
Silviano Santiago não assume, porém, a postura passiva do biógrafo. Embora ancorada numa ampla pesquisa sobre Artaud, sua narrativa opera nos interstícios documentais que permitem estabelecer uma ponte entre a poética do dramaturgo e as tensões político-culturais da década de 90.
O livro começa na Paris de 1935, quando a ruptura com os surrealistas, a penúria econômica e a dependência do ópio levam Artaud a idealizar a Revolução Mexicana como uma espécie de redenção espiritual que restaure o passado mítico asteca.
No entanto, seus primeiros contatos com autoridades mexicanas fazem-no antever um conflito latente ao longo de todo o livro: Artaud quer fazer os mexicanos ``esquecerem o que a Europa por tantos anos ensinou", mas encontra uma intelectualidade que idolatra o beletrismo francês.
Por meio de uma alternância entre os passos de Artaud rumo ao México e seus diálogos imaginários com o narrador (que leva Artaud ao Rio de Janeiro de hoje), Silviano Santiago rompe qualquer linearidade temporal.
Com isso, ele compõe um subtexto no qual pode-se ler, sob a decepção de Artaud, sua própria decepção diante do desencantamento do mundo contemporâneo.
Nesse sentido, a escala que Artaud faz em Cuba é decisiva, pois permite a Santiago transformar a Cuba dos anos 90 numa imagem especular do México dos anos 30 -ambos esmagados culturalmente pelas vicissitudes da história.
O que resta para Artaud, tanto no México quanto em Cuba, é uma epopéia por bordéis e uma progressiva recaída nos delírios da droga -últimos refúgios de um alargamento de consciência preconizado nos manifestos de ``O Teatro e Seu Duplo".
Além desse explícito significado político, ``Viagem ao México" é também uma pesquisa poética permeada de referências cifradas a autores como os cubanos Lezama Lima e Alejo Carpentier.
Foi sobre esse universo de leituras, citações e criações literárias que o escritor Silviano Santiago -que também é professor de literatura brasileira da Universidade Federal Fluminense- falou à Folha, de Paris, por telefone.

Folha - Por que escrever um romance a partir de Artaud?
Silviano Santiago - "Viagem ao México é um projeto que se iniciou na década de 70, quando fui de Paris, onde fazia doutorado, para os EUA. Uma certa inadaptação aos EUA me levou a viajar ao México e, numa dessas viagens, li "Os Taraumaras (livro sobre a experiência de Artaud junto a comunidades indígenas mexicanas).
Esse livro ficou na minha cabeça, em particular porque eu trabalhava na época sobre um ensaio, "O Entre-Lugar da Literatura Latino-americana" (incluído em "Uma Literatura nos Trópicos", Perspectiva), que falava justamente daquilo que não é nem o lá nem o cá, nem o cá nem o lá.
O resultado foi "Viagem ao México", que é uma tentativa de ir preenchendo esse entre-lugar, essas brechas.
A brecha entre Europa e América Latina, a brecha personagem-narrador e a brecha temporal (a ação se passa ora nos anos 30, ora nos anos 90) constituem uma das leituras possíveis do livro.
Folha - Mas por que o livro acaba antes que se dê o contato de Artaud com os taraumaras?
Santiago - Porque essa parte da viagem foi de fato narrada por Artaud. "Viagem ao México" é o preâmbulo imaginário da viagem de Artaud, assim como "Em Liberdade" fora a continuação de "Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos.
Folha - Qual o significado da fuga de Artaud da Europa e dessa viagem apenas anunciada?
Santiago - Desde os anos 20, Artaud vive a decepção em relação à política da esquerda, lançando violentos panfletos contra o Partido Comunista e tendo como resposta panfletos também violentos dos surrealistas, engajados no PC.
Em 1931, há o boicote total do PC à Exposição Colonial -que é uma das coisas que mais interessam a Artaud na época e onde ele vê o teatro de Bali (uma das fontes de sua estética teatral).
Assim, ele se distancia mais e mais da política do PC na década de 30, a partir de uma discordância sobretudo em relação à questão da liberdade do corpo e da imaginação, que eram coibidos por manifestos realistas, jdanovistas, dos congressos de escritores.
Ele parte então para o México, acreditando que lá encontrará uma possibilidade de renovação da sociedade a partir da experiência da revolução mexicana: segundo Artaud, abria-se ali novo lugar para a magia e encantamento dos astecas.
Folha - Essa experiência mágica acontece também na "escala" que Artaud faz em Cuba. O candomblé a que ele assiste em Havana ocorreu de fato?
Santiago - O período compreendido por "Viagem ao México" é um dos menos documentados da vida de Artaud. Sobre a passagem dele em Havana não há nada, a não ser cartas em que diz que um mágico negro lhe deu uma espada -que ele aliás carregará até o final da vida.
A partir da descrição desta espada, tentei ver a possível inserção de Artaud num ritual de candomblé. A data em que ele passa lá coincide com o dia de Iemanjá e tudo indicava, pelas pesquisas, que ele teria assistido a um rito de candomblé e que a espada era a espada de Ogum.
Folha - O senhor contrapõe a passagem de Artaud por Cuba à descrição atual do isolamento de Havana. Da mesma maneira, descreve a frustração das expectativas de Artaud no contato com a intelectualidade mexicana "europeizada". "Viagem ao México" é um livro sobre as frustrações políticas do presente?
Santiago - Uma das brechas do romance seria o surgimento dos nacionalismos econômicos na década de 30, representado sobretudo pela institucionalização do Partido Revolucionário Institucional pelo presidente Cárdenas, que corresponde a um forte nacionalismo econômico, semelhante ao de Vargas. Os anos 90 representariam, por meio do retrato de Cuba, o fim desse nacionalismo econômico.
Folha - Isso retoma o dispositivo estilístico de "Em Liberdade". Qual seria a especificidade de "Viagem ao México"?
Santiago - "Em Liberdade" trazia um jogo de identidades (entre o narrador e Graciliano Ramos) que se transformou numa estética do pastiche -que era um jogo arriscado na época.
Agora o jogo é outro. "Em Liberdade era um romance-limite; "Viagem ao México" é um romance-soma, que reúne minhas leituras, sobretudo das literaturas francesa e hispano-americana.
Folha - Como essas leituras estão codificadas no romance?
Santiago - A passagem de Artaud pela Bélgica, por exemplo, é retirada do início de "Coração das Trevas", e o hoteleiro e ex-marinheiro de Antuérpia, Marlou, é uma referência a Marlowe, personagem de Conrad.
O guarda que dá indicações turísticas a Artaud em Cuba é Lezama Lima. Da mesma forma, Aleixo é Alejo Carpentier -e a discussão sobre a arquitetura de Havana está num ensaio de Carpentier sobre as colunas.
O episódio da bebedeira de Cardoza y Aragón no México, enfim, é retirado de um ensaio do próprio escritor sobre a embriaguez.
Folha - As personagens totalmente ficcionais também têm essa inspiração intertextual?
Santiago - Sim. A passagem envolvendo o índio -e puto- Ladino é tirada de um livro dos anos 50 chamado "Pedro Juan Jolote". Isso tem um importante aspecto simbólico, pois esta obra é a primeira narrativa antropológica -no sentido ficcional- sobre os chiapas, o grupo indígena que representa o maior problema político mexicano de hoje.
Folha - As citações são parte do teor pós-moderno do livro?
Santiago - Acho que pós-modernidade significa essa possibilidade de trabalhar discursos de densidades variadas -como o discurso literário, o discurso cotidiano, ou discurso sobre o corpo-, sem contudo hierarquizá-los.

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