São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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A volta de um clássico pioneiro

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um europeu que olha o mapa da América do Sul imaginará que a Argentina está colada ao Brasil. Nós, no entanto, sabemos do abismo cultural e histórico que nos separa. Já se tornou lugar-comum lembrar que durante décadas os intelectuais brasileiros se informavam da literatura argentina em francês, nas livrarias parisienses. Não é menos verdadeiro que nossos vizinhos portenhos pouco sabem acerca do que aqui se escreve e que, quando são traduzidos para o espanhol, os autores brasileiros circulam antes em Madri ou Barcelona.
É um fato que a surdez mútua que há séculos bloqueia os contatos entre a América Hispânica e o Brasil ainda não foi realmente rompida. Fora de um pequeno círculo de "conaisseurs", o romance argentino, cubano, colombiano etc. chegou-nos como eco de uma moda internacional e, ao que tudo indica, temporária. Essa é uma razão a mais para se prezar a produção desse pequeno círculo que inclui, para citar apenas alguns, críticos como Raul Antelo, Irlemar Chiampi e Jorge Schwartz, dedicados não apenas ao estudo das obras e dos autores hispano-americanos como também à comparação destes com os brasileiros.
Entre estes estudiosos de alto nível, Davi Arrigucci Jr. é sem dúvida um pioneiro e seu "O Escorpião Encalacrado", um minucioso e profundo estudo da obra do argentino Julio Cortázar, tornou-se, quando publicado há mais de 20 anos, um autêntico marco não só da possibilidade de contato direto entre duas tradições tão próximas e, ao mesmo tempo, tão apartadas, como também da investigação séria do que então se fazia de mais ousado na literatura internacional. (As dificuldades de contato entre as duas metades da América Latina podem ser exemplificadas pelo fato de que apenas agora um livro importante como este está sendo traduzido para o espanhol por Walquíria Wey, para ser publicado pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico).
O que Davi enfrentou então era assim um duplo desafio: a abordagem, por um lado, de uma área idiomática virtualmente inexplorada no Brasil e, por outro, o desbravamento de um território cronologicamente novo. Livros dedicados a Cortázar e à literatura latino-americana em geral são hoje numerosos em vários idiomas. Mas, quando "O Escorpião Encalacrado" foi escrito, a situação não apenas era diferente, como o autor estudado e seu pai espiritual/literário Jorge Luis Borges estavam longe de desfrutar da fama e da estima consensual que os caracteriza desde os anos 80. Aliás, pelo contrário, tanto Borges quanto Cortázar estavam, no começo dos anos 70, entrando provavelmente na fase de maior turbulência da história de suas respectivas recepções. Paralelo ao processo de fechamento autoritário (marcado por todo tipo de censura oficial da criação cultural) de todo o subcontinente chegou-se também nessa época ao ápice do policiamento político dessa mesma cultura, policiamento realizado pelas oposições de esquerda que eram, à sua maneira, um establishment não menos ditatorial.
O fato de Borges ser um antiperonista histórico ou de Cortázar ter nascido e viver na Europa já bastava nesses tempo paleolíticos para indispô-los com a esquerda -embora o mais velhos dos dois escritores sempre tivesse sido um liberal antiautoritário e o mais jovem, um esquerdista à sua própria maneira. Ainda em 77 ou 78 um escritorzinho insignificante como Eduardo Galeano podia despejar calúnias baixas sobre Borges e receber os aplausos de uma platéia brasileira que seguramente não havia lido uma linha do autor de "Ficciones". Nesse clima, o crítico brasileiro não deixou de revelar também uma real independência de espírito, ao tomar o partido de uma vertente literária no momento mesmo em que estava sendo mais vilipendiada. Esse é um fato que os leitores mais jovens, desinformados da acerbidade que as pequenas disputas políticas assumiram então, não teriam como saber -e merece, por isso mesmo, ser ressaltado.
Mais do que isso, numa seção preciosa de seu livro, Davi faz o levantamento histórico dessa linhagem literária combatida que remonta, pelo menos, aos contos fantásticos de Leopoldo Lugones e Horacio Quiroga e se extende até as obras dos então jovens Cabrera Infante e Manuel Puig. O instrumental teórico que o crítico reuniu para defender sua causa tampouco deve ter servido para tornar mais aceitáveis suas opções em face dos oponentes, pois Jakobson e os formalistas russos, mas também Octavio Paz, ocupam um lugar central na sua argumentação. E esta, numa época de lukacsianismo (de Georg Lukács, crítico stalinista húngaro) triunfante, podia até parecer escandalosa por analisar a obra literária como literatura, algo que hoje talvez pareça natural, mas que não o era aos olhos daquele período.
No capítulo "Convergências, Divergências", Davi compara os projetos estético-literários dos dois argentinos: "Confrontar os projetos de Borges e Cortázar leva, de imediato, a um ponto decisivo de confluência: a simbiose de criação e crítica no próprio âmbito da ficção. Ambos são autores de narrativas fantásticas: propõem a oscilação ambígua entre o real e o irreal, tema básico de toda literatura fantástica (de certo modo, como já se tem afirmado, uma espécie de quintessência da literatura), e acabam tematizando a literatura em si mesma, transformando a narrativa numa reflexão sobre ela própria, numa linguagem sobre a linguagem. Assim, fazem da construção ficcional uma operação de dupla prospecção. Convertem a linguagem num instrumento de indagação e crítica de si mesma e, ao mesmo tempo, da própria realidade, tornando o discurso literário também um registro de perplexidades metafísicas".
Num parágrafo como esse, o crítico vai, sem titubear, ao cerne da questão, ou seja, o modo como Borges e Cortázar fazem uma ficção que é crítica que é ficção etc., num espelhismo infinito que, de certo modo, inviabiliza, reduz a uma ingenuidade inane qualquer crítica que não tome essa característica enquanto central e/ou ponto de partida. Claro que, num livro complexo como é "O Escorpião Encalacrado", essa é uma constatação importante a que se chega, mas vai-se em seguida, além disso, e o autor em questão é tratado sob os mais variados prismas temático, estilístico etc. O que Davi faz com Cortázar é demonstrar não só a riqueza de sua obra como também a coerência interna do projeto que a norteia, seus vínculos com autores como Borges e seu interesse geral, além de suprir informações as mais variadas num estudo a um tempo intensivo e completo. O resultado é, além de um quadro completo da obra do argentino (discutindo, por exemplo, a função do jazz na sua arte) que seus admiradores não podem deixar de ler, uma discussão, como já foi dito acima, realmente pioneira de um recorte importante, provavelmente o mais importante, da literatura hispano-americana. E, devido à sua percepção crítica e à sua sensibilidade aos problemas autenticamente literários, "O Escorpião Encalacrado" continua o livro novo que era quando foi lançado pela primeira vez há duas décadas.

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