São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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Qualidade gráfica da coleção `Ah' supera a consistência poética

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A editora Arte Pau-Brasil está completando dez anos de atividades poéticas. Entre 1990 e 1991, publicou os seis volumes da coleção ``Ptyx", nos quais apareceram, entre outros, o belíssimo lunário conceitual, ``Pré-Lua e Pós-Lua", de Andriéi Vozniessiênski, Alfred de Musset e Tristan Corbière em traduções de Augusto de Campos. Contrariando as famosas forças do mercado, no final do ano passado e início desse ano, saíram os três primeiros volumes de uma nova coleção ``Ah!".
Tanto o projeto gráfico quanto o editorial estão sob a batuta do poeta e editor Alonso Alvarez, que há dez anos publica, escreve, promove e espalha poesia. A nova coleção, inteiramente dedicada à poesia brasileira contemporânea, se impõe pela qualidade gráfica: um poema por página, o corpo da letra adequado e um papel de capa que é uma beleza.
A escolha dos três primeiros livros da coleção, se por um lado abriu espaço para novos autores, não foi totalmente feliz no que diz respeito à qualidade. Vou comentar só os dois primeiros, ``Quando um Silêncio se Modifica", de Guy Corrêa, e ``Primeiro Segundo", de Ricardo Lima. ``Figos-da-Índia", de Christiane Tricerri, é um equívoco do começo ao fim e pode dar uma falsa idéia do espírito que norteia a coleção.
``Quando um Silêncio se Modifica", de Guy Corrêa, aponta na direção de um expressionismo poético. Ao percorrer as ruas de uma cidade simbólica, o autor manifesta sua subjetividade por intermédio de uma atmosfera urbana, noturna e sombria. Os 19 poemas que compõem o livro transitam entre o ``gesto que grita" e o silêncio que se torna ``única certeza do universo". O caráter expressionista do livro, presente desde os títulos -``Tempestade", ``Profecias", ``Ceifa", ``Poema-Pesadelo"- se traduz numa visão trágica da vida.
Após ``Eu te Espero na Estação dos Loucos" (1990) e ``Cinema Triste" (1992), a sensibilidade de Guy Corrêa fortaleceu seus vínculos com a pintura também de raízes expressionistas. A epígrafe de Iberê Camargo -``Eu não nasci para brincar com a figura, fazer berloques, enfeitar o mundo. Eu pinto porque a vida dói"- prepara o leitor para os versos iniciais do poema-homenagem ao pintor norueguês Edvard Munch: ``Numa quinta-feira/ encapotado num museu de Manhattan/ Eu ouvi a rotação de sua obra/ A realidade virá de Deus/ ou das sombras que nas suas telas esbarram?". A leitura de ``Quando um Silêncio se Modifica" deixa a impressão de que não é os poemas não brilhem individualmente, mas o conjunto deles consegue transmitir uma atmosfera em que é possível reconhecer a presença de uma voz própria.
``Primeiro Segundo" marca a estréia de Ricardo Lima. O autor já era conhecido pela sua atuação em Ribeirão Preto, SP, como produtor cultural e editor da série ``Macondo", que publicou excelentes textos em prosa e poesia, com acabamento gráfico exemplar. Salvo engano, o título ``Primeiro Segundo" alude à própria estrutura da obra, dividida em duas partes, ``À Palmatória" e ``Arrumos". Porém, sob o ângulo de uma ars póetica, pode ser lido como o instante privilegiado da percepção, registro fotográfico, poesia à primeira vista.
Seguindo este raciocínio, poderíamos afirmar que em ``À Palmatória" a ênfase recai sobre o instante lírico, captado com delicadeza e brevidade, realizando vários ``takes" da experiência amorosa moderna. O desencontro dos amantes percorre todas as escalas, vai do amor desfeito ao rarefeito. Já em ``Arrumos", afeito ao mesmo princípio de concisão, dirige o olhar para o luto, o podre, a vaia.
O caminho escolhido por Lima demonstra uma grande afinidade com a concentração lírica praticada pelos ``objetivistas" americanos. A luz primeva de William Carlos Williams bate de chapa em ``Primeiro Segundo". Apesar de pertencer a esta linhagem, Ricardo Lima não consegue coadunar a inocência da primeira visão com a eficácia conceitual da imagem.

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