São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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Desejos refinados

Romances como `A Tulipa Negra', de Dumas, aprimoram o leitor

SAMUEL TITAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O crítico canadense Northrop Frye conta que, certa vez, queixando-se do tédio que as longas viagens de avião e consequentes esperas em aeroportos trouxeram à vida moderna, ouviu do colega R. P. Blackmur uma receita infalível: ler Walter Scott. Frye experimentou, gostou e acabou escrevendo um livro inteiro sobre o assunto.
A anedota de Frye serve de parábola para o renascimento e reabilitação do romance de aventuras e, mais amplamente, do gênero romanesco. Já não há demérito em falar daqueles livros e autores que se lêem na adolescência, mas que parecem -ou pareciam- indignos de atenção adulta.
O relançamento, em nova tradução, de ``A Tulipa Negra", de Alexandre Dumas (o pai), parece fazer parte dessa tendência, que inclui, entre outros itens já no mercado, reedições de Stevenson, H.G. Wells ou das ``Mil e Uma Noites", além de filmes sobre enredos de Dumas (``A Rainha Margot", ``Os Três Mosqueteiros", ``A Filha de D'Artagnan") e J. F. Cooper (``O Último dos Moicanos").
Não que o romanesco tenha alguma vez morrido: nenhuma sociedade seria capaz de saciar suas necessidades imaginativas com a dieta magra de ``nouveau roman" e poesia metalinguística. Daí a proliferação de esquemas narrativos romanescos nas novelas de TV, no cinema americano, na ficção científica e nas histórias de Sabrina. O que há de novo neste instante é o beneplácito de editores e leitores ``sérios" a esse filão da literatura.
Em que medida essa atitude é -ou pode ser- algo mais que mera complacência? O já citado Frye sugere uma resposta: a história de aventuras (e de resto todo o gênero romanesco) encarna como nenhuma outra espécie de ficção um dos móveis mais profundos da literatura e do consumo de literatura, a saber, a encenação visível do embate entre os desejos humanos e os obstáculos do mundo.
Pode fazê-lo de modo primário, como nas novelas da Globo ou nos filmes de Stallone contra o ``Império do Mal"; mas pode igualmente promover um crescente refinamento dos nossos desejos, por via da elaboração literária dos conflitos. Isso porque a própria circunstância de se tratar de literatura, de vida imaginária, obriga-nos, leitores, a penetrar um espaço do qual está excluída a ação real, onde resta apenas a contemplação dos sucessivos percalços dos nossos heróis e heroínas.
Está aberta a via para que o leitor vá além da simples identificação com os protagonistas e chegue à visão mais abstrata de estruturas imaginárias que se erguem, desfazem e reconstroem. Ao mesmo tempo em que se deixa enfeitiçar pela convenção literária, o leitor tem a chance de percebê-la enquanto tal.
Nesse sentido, ler atentamente um romance de aventuras significa adquirir a chave para todos os outros. ``A Tulipa Negra", a despeito de suas frases algo trôpegas, beirando a redação escolar, não é exceção: estão lá o par romântico central (Cornelius e Rosa), o pai malvado (Grifus), o usurpador e rival amoroso (Isaac Boxtel); há o esquema ternário (três bulbos, três chances); há o aprisionamento numa torre e os estratagemas engenhosos para que a ação prossiga (leia-se ``A Cartuxa de Parma", de Stendhal).
Há, sobretudo, um daqueles objetos romanescos por excelência, que concentram e costuram a ação: no caso, a ``Bíblia", de Cornélio de Witt -mas quem se esquece dos diamantes da rainha n'``Os Três Mosqueteiros" ou, em versão paródica, do muiraquitã de ``Macunaíma"?
Se de fato cada história romanesca contém em si a gramática básica de todas as outras, não será então por acaso nem sem boa razão que o gênero há tempos vem servindo de via de ingresso à literatura, e mesmo à literatura ``adulta", para sucessivas gerações de leitores: o convívio com as formas básicas prepara o caminho para combinações mais complexas e exigentes.
No caso do romance de pretensões históricas, como os de Dumas, Scott e Alencar, pode-se ainda imaginar uma outra utilidade pedagógica: depois de décadas de livros didáticos de história dominados ou pela monotonia das datas ou por um marxismo de terceira categoria, que fazia desfilar um modo de produção atrás do outro, o romance histórico pode ajudar a criar no aluno ginasiano (e talvez futuro leitor de Carlo Ginzburg) um sentido de história viva, que demanda decisões e implica resultados tangíveis.
Sempre, é claro, com um grão de sal: num livro de 1986 (John de Witt), o historiador Herbert Rowen lança dúvidas sobre a participação de Guilherme 3º no complô contra os irmãos de Witt e, depois de elogiar a recriação do massacre no Buytenhoff, acusa Dumas de tornar irreconhecível a história.
Por fim, vale lembrar que, já há alguns anos, José Paulo Paes falava da necessidade de uma literatura nacional de entretenimento. Algo de semelhante parece estar por trás desta edição d'``A Tulipa Negra", patrocinada por um grupo de escolas privadas paulistanas -supõe-se que para uso de seus alunos. Num país tão pouco romanesco como o Brasil (exceção feita à profusão de vilões, agrupados em lugares de nomes tão fabulosos como ``Palácio da Ondina"), é de se comemorar uma iniciativa dessas.

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