São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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O vigor do fantástico

GENTIL DE FARIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A literatura universal resgatou o nome de pelo menos quatro escritores ingleses, considerados astros de segunda grandeza em seu país, do banimento decretado pela crítica dos seus conterrâneos. A hostilidade dos patrícios contemporâneos não impediu, porém, que esses rejeitados obtivessem enorme sucesso fora da Inglaterra.
São eles: Lorde Byron, Oscar Wilde, Conan Doyle (o criador do imortal detetive Sherlock Holmes) e Rudyard Kipling. Cada um deles recebeu, por motivos vários, a preconceituosa designação de autor de segunda linha (``second-rate writer").
A imagem de Kipling, como o cantor chauvinista do imperialismo britânico, foi construída desde a publicação de seus primeiros versos e solidificou-se com as obras em prosa, dirigidas principalmente ao público juvenil, como as histórias de animais selvagens contidas em ``O Livro do Jângal" e no romance -bastante popular- ``Kim", publicado em 1901 e traduzido no mundo todo.
O Kipling poeta parece ser de difícil reabilitação. Sua poesia é datada e remete o leitor ao período glorioso da expansão do Império Britânico. O último grande crítico a escrever sobre ela foi T.S. Eliot, na introdução à seleção de poemas, publicada em 1941.
Hoje são raras as antologias que ainda trazem alguns dos seus poemas mais conhecidos, como ``The Ballad of East and West" e ``Recessional", famoso por ter sido escrito especialmente para a celebração do jubileu de diamante da rainha Vitória.
No Brasil, a fama de Kipling repousa nos seus livros infantis, que aqui receberam várias traduções, entre elas as reescrituras de Monteiro Lobato, que alcançaram grande popularidade.
Seu poema mais conhecido entre nós é ``Se" (``If"), na tradução de Gondim da Fonseca, que ainda provoca deleites nos apreciadores da chamada literatura de auto-ajuda, cujo final encerra uma lição de moral: ``Se, de cada minuto, enches cada segundo/ com um passo para a frente em luminoso trilho,/ então eu te direi que dominas o Mundo/ e direi muito mais: que és um homem, meu filho!". É muito comum encontrar este poema emoldurado num quadro dependurado nas paredes dos escritórios de empresas em São Paulo.
Kipling nasceu em Bombaim, em 1865. Aos cinco anos, seus pais ingleses o enviaram para estudar na Inglaterra, de onde só voltou em 1882 e aí permaneceu por mais sete anos, exercendo atividades de jornalista.
São esses 12 anos de residência na Índia que vão fornecer vasto material para a imensa produção literária em prosa e verso, que se encontra reunida em 35 volumes. A sua morte ocorreu em Londres, em 1936, e seu corpo foi enterrado na abadia de Westminster, com a concorrida presença do ``top people" do poder oficial inglês: o primeiro ministro, generais, almirantes e altos funcionários, mas sem contar com a homenagem dos homens de letras da época.
Para o inconformismo dos seus conterrâneos, Kipling foi o primeiro escritor inglês a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Ele também é, até hoje, o autor de menos idade a ganhar esse prêmio. Isto ocorreu em 1907, quando tinha apenas 42 anos.
Dificilmente um Nobel chega aos escritores com menos de 60 anos. Os ingleses trabalharam muito para viabilizar as candidaturas de Swinburne e Thomas Hardy, mas a academia sueca escolheu Kipling, pois, além de ser o preferido dos acadêmicos, era muito mais popular entre os suecos, sobretudo junto ao público infanto-juvenil. No discurso de recepção, o presidente da cerimônia saudou o premiado como ``o maior gênio do romance descritivo que a Inglaterra viu nascer em nosso tempo".
Entretanto esse Kipling ingênuo, burguês, enaltecedor do militarismo inglês e inconsciente dos conflitos sociais de sua época entrou em decadência e cedeu lugar para um outro Kipling, muito mais talentoso e vigoroso, o criador de ``Histórias Sobrenaturais".
É esse ainda desconhecido Kipling que ressurge para o público brasileiro, pela primeira vez, na admirável tradução de José J. Veiga, que, aos 80 anos, demonstra que o ato de traduzir frutifica em melhores resultados quando há afinidades literárias entre o tradutor e o autor traduzido.
O agora revivido Kipling nesta tradução brasileira está longe da imagem cristalizada do imperialista vulgar e defensor da classe dominante e do sistema de castas. Seu novo perfil, até então desconhecido, se consubstancia no autor de excelentes contos fantásticos que não fazem má figura se comparados com os de Poe, Henry James, Jorge Luis Borges e os do próprio José J. Veiga, principal cultor do gênero, ao lado de Murilo Rubião, entre nós.
A coletânea traduzida reúne 33 histórias sobrenaturais, criteriosa e cronologicamente escolhidas entre os melhores textos que Kipling escreveu no período compreendido entre os anos de 1884 e 1926. Em muitos desses contos, o leitor perceberá, além da força narrativa do autor, a presença do poeta que, não raro, entrecorta os textos em prosa com momentos poéticos, representados por pequenos poemas que se ajustam perfeitamente ao fio condutor do enredo.
Todos os contos podem ser lidos e fruídos com prazer, pois despertam forte emoção no leitor. Dois, entretanto, são excepcionalmente bem construídos e revelam, sobremaneira, a integração harmônica do poeta e do prosador: ``Eles" e ``O Jardineiro", ambos inspirados em episódios biográficos da vida do escritor.
Em ``Eles", escrito em 1904, o narrador vivencia uma história na qual dirige seu carro pelo campo e se depara com uma casa antiga situada num belíssimo cenário. Aí mora uma mulher cega com várias crianças, que não são seus filhos. Aos poucos, essas crianças são reveladas como não pertencentes ao mundo dos vivos. São apenas espectros. Numa comovente fabulação, o protagonista sente sua mão ``tocada e depois afagada pelas mãozinhas macias de criança". A brutal perda de Josephine, sua filha de seis anos, morta em 1899, inspirou a Kipling este conto de envolvente ternura e atmosfera sobrenatural.
``O Jardineiro", publicado em 1926 e último conto da coletânea, é também uma história de mortos. Helen Turell, mulher de 35 anos e independente, mantém um filho ilegítimo -Michael- passando-o como se fosse um sobrinho. Vem a guerra e Michael é morto em combate. Helen vai visitar sua sepultura no cemitério militar e lá pergunta ao jardineiro a localização do ``tenente Michael Turrell, meu sobrinho", dizendo lentamente, ``palavra a palavra, como tinha feito milhares de vezes antes". O jardineiro responde: ``Vem comigo e eu lhe mostro onde está o seu filho".
O mistério do conto está em desvendar a identidade nunca revelada do jardineiro, que tanto pode ser o espírito do próprio jovem morto como Jesus Cristo ou até uma pessoa qualquer que sabia da verdadeira história de Helen. O enigma persiste ao final, quando o narrador afirma que Helen foi embora, supondo que aquele homem fosse o jardineiro. Este conto está relacionado também com a vida pessoal de Kipling, que teve o filho -John- desaparecido na Primeira Guerra Mundial e cujo corpo nunca foi encontrado.

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