São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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UM SEMINÁRIO DE MARX

Continuação da pág. 5-5

ROBERTO SCHWARZ

Com a vitória de FHC, mais uma vez a evolução geral do capitalismo desarmava o enfrentamento interno e dava espaço à recondução, ainda que relativa, do bloco de poder
Um dos melhores capítulos de "Capitalismo e Escravidão" estuda os dilemas da racionalização de uma economia escravista. É claro que neste contexto as idéias de razão e produtividade, discutidas com minúcia, aparecem a uma luz crua. O deslocamento meio macabro entretanto não as desqualifica nem ele é sem relevância. Muito pelo contrário, então como hoje, as inadequações desse tipo abrem janelas para o lado escuro mas decisivo da história contemporânea, o lado global, dos resultados involuntários, crescidos "atrás das costas" dos principais interessados. Às apalpadelas, havia consciência no seminário de que sem crítica e invenção categorial -ou seja, sem a superação da condição mental passiva, de consumidores crédulos do progresso das nações adiantadas (e também das atrasadas)- não seria possível dar boa conta da tarefa histórico-sociológica posta em nossos países. Noutras palavras, faria parte de uma inspiração marxista consequente um certo deslocamento da própria problemática clássica do marxismo, obrigando a pensar a experiência histórica com a própria cabeça, sem sujeição às construções consagradas que nos serviam de modelo, incluídas aí as de Marx.
Esta ordem de questões iria encontrar o seu tratamento maduro na tese de Fernando Novais sobre "Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial" (1777-1808). O livro, concebido nos anos do seminário e terminado muito tempo depois, é a obra-prima do grupo. Como indica o título, a exposição vai do todo à parte e vice-versa, com domínio notável sobre a matéria nos dois planos. Contra o preceito corrente, que manda situar a história local no seu contexto mais amplo, cuja compreensão entretanto não está em jogo por sua vez, Novais busca ver os âmbitos um no outro e em movimento. Assim, as reformas portuguesas no Brasil, que naturalmente visavam preservar a posição da Metrópole, são observadas também como outros tantos passos involuntários na direção da crise e da destruição do Antigo Sistema Colonial no seu conjunto, a bem da Revolução Industrial na Inglaterra. Um encadeamento propriamente dialético. A exposição em vários planos, muito precisa e concatenada, é um trabalho de alta relojoaria, sem nenhum favor. Também aqui o marxismo rigoroso mas não dogmático punha em dificuldade as idéias feitas, dos outros e as suas próprias. Entre estas, como se sabe, está a que afirma o primado da produção sobre a circulação ou, por outra, que manda fundar a compreensão histórica nas relações de produção locais.
Pois bem, acompanhando a dinâmica de conjunto do capitalismo mercantil, Novais chega à conclusão heterodoxa, além de contra-intuitiva, de que a escravidão moderna é uma imposição do tráfico negreiro, e não vice-versa. Digamos por fim que a interpenetração da história local e global alcançada neste livro não descreve apenas a gravitação daquele tempo, como também responde a uma intuição do nosso.
Uma das melhores contribuições do seminário não veio dele senão indiretamente. Espero não forçar a realidade achando que ``Homens Livres na Ordem Escravocrata" (1964), de Maria Sylvia de Carvalho Franco, embora elaborado fora do grupo, respira o seu mesmo clima crítico, ideológico e bibliográfico. Passando por alto as diferenças, há complementaridade de fundo com ``Capitalismo e Escravidão". Este último livro surpreendia ao integrar o trabalho escravo aos cálculos e à reprodução da sociedade moderna. Analogamente, Maria Sylvia salientava o vínculo de estrutura entre a categoria mais relegada e confinada do país -os homens pobres do interior- e a configuração da riqueza e do poder mais avançados, tal como se haviam desenvolvido na civilização do café. Embora ``Capitalismo e Escravidão" pesquisasse a economia do charque no Rio Grande do Sul e ``Homens Livres" tivesse como documentação de base os processos-crime da comarca de Guaratinguetá, as grandes linhas argumentativas das duas monografias pedem para ser conjugadas, pois se referem a dimensões interligadas, gerais e decisivas da sociedade brasileira no conjunto. A sujeição violenta em que se encontra o escravo, bem como a relação de dependência à qual o homem livre e pobre na ordem escravista não pode fugir, ambas têm como antagonista, no pólo oposto, a camada de homens que a propriedade insere no mundo do cálculo econômico.
Fernando Henrique havia analisado os impasses cruéis da racionalização produtiva no escravismo. Em espírito similar, Maria Sylvia observa que os donos da terra tratam os seus moradores e dependentes ora como apadrinhados, com os quais têm obrigações morais, ora como estranhos, sem direito a morada ou proteção (ou seja, a terra em que moram de favor pode ser vendida). Essa última mudança de atitude, em que o mundo vem abaixo para um dos lados, ocorre arbitrariamente, sem satisfações a dar, conforme a variação dos interesses econômicos ou outros da outra parte.
Assim, ainda que nas duas monografias a simpatia dos autores fique com os oprimidos, cujas chances analisam, o resultado substantivo vai na direção contrária, sublinhando a margem de manobra que a peculiar estrutura do processo brasileiro faculta à propriedade, a qual segundo a conveniência toca os seus negócios por meio de escravidão, trabalho livre, relações paternalistas ou indiferença moderna. Longe de ser apenas um emparedamento no passado, este leque de "opções" mostrava ser uma bem explorada prerrogativa social no interior da cena contemporânea. Noutras palavras, ao aprofundar a análise de classe, o seminário especificava a imensa e desconcertante liberdade de movimentos da riqueza em face dos oprimidos no país (o que não deixava de ser um resultado paradoxal para um grupo de estudos marxistas).
Como se sabe, as perguntas que dirigimos ao passado têm fundamento no presente. Se fizermos abstração da matéria específica que as três teses pesquisaram (a qual entretanto lhes conferia a nova seriedade universitária), o seu conjunto como que indica a mão invisível da história contemporânea, ou melhor, indica a obra que se estava esboçando através de nós todos e até agora não chegou ao papel com a plenitude desejável. Tratava-se de entender a funcionalidade e a crise das formas "atrasadas" de trabalho, das relações "arcaicas" de clientelismo, das condutas "irracionais" da classe dominante, bem como da inserção global e subordinada de nossa economia, tudo em nossos dias. O estímulo vinha da radicalização desenvolvimentista, a que a universidade respondia de modo oblíquo: por que a Abolição, além de não levar à Liberdade, não criou um operariado à maneira clássica? Como imaginar a passagem da estreiteza das relações de dependência pessoal à abertura nacional e internacional da consciência de classe? Como se processam internamente, no bojo das aspirações emancipatórias e dentro da correlação de forças local, as grandes transformações da atualidade, que de emancipatórias podem não ter muito? Embora fosse a inspiração de todos, é preciso convir que o horizonte socialista não se desenhava com firmeza nos fatos, nem ganhava corpo na figura que estes trabalhos isentos de demagogia compunham. Passando por cima da convicção dos autores, a pesquisa acadêmica radical ia delineando um quadro irresolvido, de difícil interpretação, que ainda vale a pena interrogar.
A relevância contemporânea e extra-acadêmica destes pontos de vista apareceu no livro seguinte de F.H. Cardoso, ``Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico", sempre uma tese universitária, mas já a meio caminho da intervenção política. O parágrafo final, redigido às vésperas e sob a pressão do desfecho de 64, concluía por uma alternativa inesperada para a esquerda. No que dependesse da burguesia industrial, que era quem pesava mais na balança, o rumo estava tomado: "satisfeita já com a condição de sócio menor do capitalismo ocidental e de guarda avançada da agricultura", ela renunciara a tentar "a hegemonia plena da sociedade. A incógnita, se houvesse, vinha do campo oposto. Qual seria "a reação das massas urbanas e dos grupos populares"? Teriam capacidade de organização e decisão "para levar mais adiante a modernização política e o processo de desenvolvimento econômico do país"? "No limite a pergunta será, então, subcapitalismo ou socialismo?"
Só Deus sabe o que teria sido este socialismo, mas o prognóstico, no que diz respeito ao subcapitalismo, não só fugia à voz corrente como se mostrou exato. A alternativa contrariava de frente as formulações do Partido Comunista, que se haviam transformado no clima geral da esquerda e justificavam as alianças em que esta acreditava. Sempre aplicando definições remotas, o PC afiançava -no jargão do tempo- o interesse antiimperialista da burguesia nacional, que por isso mesmo seria aliada da classe operária na luta pela industrialização do país, ao passo que o latifúndio e os americanos formavam o bloco oposto ao progresso. Nesta perspectiva, não haveria industrialização sem vitória sobre o imperialismo, ou, por outra, a vitória deste confinaria o país em sua feição agrícola.
Ora, como se sabe, este conjunto de teses foi duramente desmentido pela história. No aperto, a burguesia nacional preferiu a direita e os americanos ao operariado nacionalista, que por sua vez, em parte ao menos, também preferia as firmas estrangeiras. E o mais importante: contrariando a previsão dos progressistas, ao golpe conservador seguiu-se um poderoso surto industrial -que entretanto não cumpriu nenhuma das promessas políticas e civilizatórias que se costumam associar ao desenvolvimento econômico. Fernando Henrique acertara em toda linha, também neste ponto: tratava-se de um "subcapitalismo", ávido de avanços econômicos e sem compromisso com a integração social do país. A impopularidade da tese não impedia que a sua justeza fosse reconhecida à boca pequena, e suponho que a ascendência intelectual e política de seu autor no interior da esquerda tenha crescido a partir daí.
Outro fator de autoridade esteve na crítica frontal às concepções despolitizadas do subdesenvolvimento então propagadas pelo establishment americano. Contra os esquemas abstratos em voga nos Estados Unidos, que propunham a questão em termos inocentes, de variáveis econômicas bem ou mal combinadas, tratava-se de identificar os interesses envolvidos, sem os quais aquelas variáveis permaneciam letra morta. Em lugar do rearranjo de fatores econômicos isolados, operado de preferência no vácuo, ou das genéricas escalas de transição do tradicional ao moderno, entrava em foco, com evidente vantagem intelectual, o campo efetivo da luta pelo desenvolvimento.

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