São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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UM SEMINÁRIO DE MARX

ROBERTO SCHWARZ

Um campo histórico, pautado pelas grandes coordenadas do tempo: capitalismo dos monopólios, imperialismo, competição internacional, descolonização, enfrentamento entre capitalismo e socialismo, configurações específicas da luta de classes. Talvez se possa dizer que naqueles anos tumultuosos, de culminação e crise do nacionalismo desenvolvimentista, o qual trouxe à cena a massa dos excluídos e os prometia integrar (ilusão ou não), a experiência da história empurrou uma parte da intelectualidade a se desapequenar. A teoria social desenvolvida nas universidades dos países hegemônicos passava a ser examinada com olhos críticos, a validade geral de seus consensos sociológicos e econômicos deixara de ser ponto pacífico, e mesmo o seu lado mediocremente apologético foi notado. Com isto, a discussão do subdesenvolvimento adquiriu uma representatividade contemporânea inédita, que abria perspectivas ao pensamento de oposição também no mundo desenvolvido. A circulação mundial da obra de Celso Furtado e da Teoria da Dependência, sem falar no destaque alcançado por artistas latino-americanos no período, dão testemunho deste interesse acrescido. Com altos e baixos, a floração do marxismo e da dialética no continente expressava e formulava esta repolarização dos pontos de vista, que impregnou de história e contradição a questão dita técnica da luta contra o atraso.
Do ângulo acadêmico, mas também político, a novidade estava em associar a visão marxista da industrialização brasileira a uma enquete sobre o que pensavam e faziam os empresários. O marxismo defrontava-se com fatos que lhe dizem respeito, ao passo que os industriais eram postos diante de sua responsabilidade histórica, vista esta no quadro vasto da industrialização retardatária, do progresso e da integração (ou desintegração) nacionais, do confronto entre capitalismo e socialismo -sem esquecer a opção pelo golpe militar iminente, uma data destacada no calendário da Guerra Fria. Sem favor, a pesquisa universitária deixava de ser remota. A busca da ligação viva e contraditória entre as contingências locais e o andamento global da história contemporânea atendia a um ideal de dialética. Noutro plano, respondia também a uma aspiração peculiar do debate brasileiro, sempre isolado da atualidade pelas feições singulares e "arcaicas" do país, e sempre necessitado, por isso mesmo, de um trabalho crítico de desprovincianização, que permita entendê-lo no presente.
O percurso e a conclusão do ``Empresário Industrial" formavam a síntese atualista dos resultados do seminário. Conforme o livro trata de mostrar, o trajeto em direção do desenvolvimento não é o mesmo nos países desenvolvidos e nos subdesenvolvidos, embora aqueles sirvam de modelo para estes. O que não quer dizer que os últimos não se desenvolvam, mas que o seu desenvolvimento corre noutros trilhos, encontra problemas diferentes e é levado adiante por categorias sociais que tampouco são as mesmas. Assim, a sua burguesia nacional não corresponde ao conceito de burguesia nacional, idem para a sua classe trabalhadora. A própria noção de racionalidade econômica não coincide, e só os doutrinários ou os sociólogos não sabiam que um empresário weberiano estrito no Brasil se daria mal e seria um exemplo de irracionalidade. Segundo os espíritos ofuscados pelo modelo canônico, estas diferenças inviabilizariam o desenvolvimento. Não assim o espírito dialético, afeito a ver o mesmo no outro. Na verdade, é no interior daquelas diferenças tão heterodoxas que o desenvolvimento vai se dando, até que em 64 a crise chame à ordem do dia a redefinição da sociedade, que daria substância social e civilizadora às promessas do desenvolvimento, quando então a classe dominante atalha as aspirações populares e sai pela brecha do subcapitalismo, que a nova configuração da economia internacional lhe abria.
Em suma, com o progresso as anomalias da sociedade brasileira se reproduziam noutro patamar, em lugar de se dissolverem. De outro ângulo, estas anomalias são o arranjo sociológico-político em cima do qual se processa a inserção do país na economia internacional, e nada mais normal do que elas, portanto. Noutros termos, ainda, o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos não leva ao desenvolvimento senão em aparência, pois assim como, chegado o momento, estes repõem o seu travejamento social "arcaico", o capitalismo visto no todo e em plena ação modernizante também repõe a situação subdesenvolvida, que neste sentido faz parte do travejamento arcaico da própria sociedade contemporânea, de cujo desenvolvimento então seria o caso de duvidar.
Noutras palavras, estavam errados tanto os descrentes quanto os crédulos. O pioneirismo do quadro -em cujas cores paradoxais carreguei um pouco- era grande, levando Florestan Fernandes a escrever na orelha do livro que "de fato", só os cientistas sociais dos `países subdesenvolvidos' possuem condições para resolver problemas metodológicos ou teóricos mal formulados pelos autores clássicos. O próprio autor da monografia terá sentido a novidade e o risco de sua posição, pois termina a nota introdutória lembrando o Galileu de Brecht, que a certa altura, pensando em si mesmo, na ciência e na inquisição, faz o elogio dos copernicanos: "O mundo inteiro estava contra eles, e eles tinham razão". Quando um pouco adiante Giannotti redigiu a sua crítica ao marxismo tão influente de Althusser, na qual se opunha, com notável independência, ao esvaziamento positivista das categorias sociais, suponho que obedecesse a um sentimento desta mesma ordem, de valia da experiência histórica feita (5).
``Dependência e Desenvolvimento na América Latina" foi escrito depois do golpe, no Chile, e já não pertence à época do seminário. Não tenho os conhecimentos para um bom comentário de suas relações com a teoria econômica cepalina, nem da repercussão que alcançou, evidentemente muito grande. Seu programa de especificações históricas, sociológicas e econômicas, assim como o sistema das variações de país a país, que aponta para um todo em movimento, fazem a novidade e a força do livro. Espero não errar, contudo, notando que em parte se trata da generalização e do ajuste, para o continente, dos pontos de vista do ``Empresário Industrial". Lá estão as singularidades dos arranjos sociológicos nacionais, sempre subdesenvolvidos e carregados de história, funcionando como suportes da inserção contemporânea da economia.

Continua à pág. 5-7

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