São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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UM SEMINÁRIO DE MARX

ROBERTO SCHWARZ

Alguém imagina Marx escrevendo ``O Capital" para salvar a Alemanha? Assim, o seminário em fim de contas permanecia pautado pela estreiteza da problemática nacional
São eles a travação do caráter dependente, ou "sub, de seus países, que nem por isto ficam excluídos do desenvolvimento capitalista, que se processa de forma sui generis através daqueles mesmos arranjos (a reposição do atraso), ou de sua reformulação (o atraso reposto de modo novo). Ainda uma vez tratava-se de mostrar que as categorias econômicas não andam sozinhas e que a subordinação dos subdesenvolvidos não dispensava uma correia de transmissão interna, acessível à luta política (este o momento combativo). E que as transformações do capitalismo central mudam os termos do enfrentamento de classes nos países periféricos, abrindo saídas imprevistas no quadro do conflito cristalizado anteriormente, que passa a girar em falso, enquanto a nova solução recria outra modalidade de atraso (este o momento de dura constatação).
Para concluir com um pouco de pimenta, saltando mais de 20 anos, acho possível enxergar uma configuração análoga na eleição presidencial de 1994. Para Lula e o Partido dos Trabalhadores a disputa dava-se em termos nacionais internos, tendo de um lado o Brasil carcomido e conservador, enfeitado pela conversa fiada tecnocrática, e do outro o Brasil social, do progresso e da integração dos excluídos. Ao passo que FHC apostava na incidência da mutação econômica global, que valoriza a estabilidade doméstica, convidava o eleitorado a participar das novidades materiais e organizativas do mundo contemporâneo e declarava matéria vencida os conflitos armados no período anterior. À vista do resultado, mais uma vez a evolução geral do capitalismo desarmava o enfrentamento interno, de conteúdo sociológico claro, e dava espaço à recondução, ainda que relativa, do bloco do poder. Tudo em linha com as análises já clássicas do próprio sociólogo, as quais, entretanto, em ocasiões prévias, se haviam destinado a abrir os olhos da esquerda, ao passo que agora levavam à presidência o seu Autor em pessoa, à frente de uma coligação partidária de centro-direita (6). O significado histórico desta vitória está em aberto e não é o assunto de meu depoimento -a não ser muito indiretamente, pelo viés de sua ligação com as conclusões do grupo, armadas no estudo do Brasil escravista. Com efeito, a constatação da margem de liberdade absurda e anti-social de que a classe dominante -fortalecida pelo seu canal com o progresso do mundo externo- dispõe no país, foi um dos resultados a que a contragosto chegavam os nossos estudos marxistas.
Agora, com 30 anos de distância, como fica o seminário? Já disse o bem que penso de suas contribuições para a interpretação do Brasil. Não obstante, visto de meu ângulo de hoje, o marxismo do grupo deixava a desejar nalguns aspectos, que talvez sejam sempre o mesmo. Não houve muito interesse pela crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria. Como correspondia àqueles anos de desenvolvimentismo, o foco estava nos impasses da industrialização brasileira, que podiam até empurrar em direção de uma ruptura socialista, mas não levavam à crítica aprofundada da sociedade que o capitalismo criou e de que aqueles impasses formam parte. Era lógico aliás que houvesse uma dose de conformismo embutida no projeto basicamente nacional, ou até continental, de tirar a diferença e superar o atraso, já que no caso os países adiantados (embora não as suas teorias sociológicas) tinham de ser dados como parâmetro e como bons. A parte da lógica da mercadoria na própria produção e normalização da barbárie pouco entrava em linha de conta e ficou como o bloco menos oportuno da obra de Marx.
Pelas mesmas razões faltou ao seminário compreensão para a importância dos frankfurtianos, cujo marxismo sombrio, mais impregnado de realidade que os demais, havia assimilado e articulado uma apreciação plena das experiências do nazismo, do comunismo stalinista e do ``american way of life" encarado sem complacências. Daí também uma possível inocência do grupo em relação ao lado degradante da mercantilização e industrialização da cultura, consideradas sem maiores restrições. E daí, finalmente, uma certa indiferença em relação ao valor de conhecimento da arte moderna, incluída a brasileira, a cuja visão negativa e problematizadora do mundo atual não se atribuía importância. O preço literário e cultural pago por este último descaso, aliás um subproduto perverso da luta pela afirmação da universidade, foi alto, pois fez que os achados fortes do seminário não se aliassem produtivamente ao potencial crítico espalhado nas letras e na cultura ambiente, ficando confinados ao código e ao território acadêmico, dizendo e rendendo menos do que poderiam. Para contraste basta pensar nas relações da prosa de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque com a cultura modernista, às quais se prende o estatuto tão especial de suas obras. Penso não exagerar, achando que no essencial a intuição histórico-sociológica do seminário não fica devendo à destes mestres, embora seja evidente que, pela falta da elaboração de um instrumento literário à altura, entroncado nas letras contemporâneas, as obras respectivas não ocupem um lugar de mesma ordem.
Visando mais alto, por fim, me parece certo que a clara visualização do subdesenvolvimento e de suas articulações tem alcance histórico-mundial, capaz de sustentar, suponhamos, algo como as ``Minima moralia" do que é sem dúvida uma das feições-chave do destino contemporâneo. Fica a sugestão, mas a idéia talvez não pudesse mesmo se realizar em nosso meio, já que em última análise estávamos -e estamos- engajados em encontrar a solução para o país, pois o Brasil tem que ter saída. Ora, alguém imagina Marx escrevendo ``O Capital" para salvar a Alemanha? Assim, o nosso seminário em fim de contas permanecia pautado pela estreiteza da problemática nacional, ou seja, pela tarefa de superar o nosso atraso relativo, sempre anteposta à atualidade. Ficava devendo outro passo, que enfrentasse -na plenitude complicada e contraditória de suas dimensões presentes, que são transnacionais- as relações de definição e implicação recíproca entre atraso, progresso e produção de mercadorias, termos e realidades que se têm de entender como a precariedade e a crítica uns dos outros, sem o que a ratoeira não se desarma.

NOTAS 1. Paulo E. Arantes, Um Departamento Francês de Ultramar, São Paulo, Paz e Terra, 1994, cap. 5.
2. Augusto de Campos, Decio Pignatari, Haroldo de Campos, "Plano piloto para poesia concreta" (1958), Teoria da Poesia Concreta, São Paulo, Ed. Invenção, 1965, pág. 156.
3. Leia-se a respeito a reconstituição interessante de Daniel Pécaut, Os Intelectuais e a Política no Brasil, São Paulo, Ática, 1990.
4. Do Autor, "Entrevista, em Brigada Ligeira e Outros Estudos", São Paulo, Editora Unesp, 1992, págs. 233-5.
5. "Contra Althusser", Teoria e Prática, nº 3, São Paulo, 1968; retomado em J.A. Giannotti, Exercícios de Filosofia, São Paulo, Brasiliense, 1975.
6. Para uma análise crítica do percurso, ver José Luis Fiori, "Os Moedeiros Falsos", ``Mais!", Folha, 3/7/1994, págs. 6-7.

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