São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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O filho do controle remoto

DALMO MAGNO DEFENSOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ficar em pé, caminhar até o aparelho, curvar-se, segurar o seletor, girá-lo, soltá-lo, voltar à posição ereta, fazer meia-volta, refazer o percurso até o sofá e acomodar-se novamente.
Para quem se punha diante da TV para relaxar, disposto a mover apenas as pálpebras e olhe lá, mudar de canal era uma operação complexa e cansativa.
Assim, junto com a TV surgiu a tendência de assistir à mesma emissora por horas a fio, também conhecida como "audiência inercial".
Um dia, um engenhoso funcionário de alguma multinacional inventou um aparelho parecido com uma calculadora, que permitia mudar de canal à distância mediante o simples premer de teclas.
Como na época o pessoal de marketing era bem menos criativo, deram ao aparelho o nome simples e óbvio de "controle remoto".
Era de se esperar que, podendo vasculhar o cardápio televisivo sem sair do lugar, os telespectadores se tornassem ariscos; mas entre suas fileiras surgiu um tipo particularmente indócil, que hoje constitui o flagelo dos publicitários e pesadelo dos programadores da TV: o zapper.
"Zap", como sabe qualquer leitor de quadrinhos, é o som produzido por armas emissoras de raios, utilizadas em batalhas intergalácticas para fulminar oponentes.
Como o controle remoto emite um raio em direção à TV, nada mais lógico do que chamar "zapper" a quem o aciona com frequência.
O zapper tem aversão a comerciais. Não dá a menor bola para os Leões de Ouro de nossa premiada propaganda, recusando-se a desempenhar o papel de "público-alvo" (target, em português).
Mal começado o intervalo, põe-se a xeretar a programação dos outros canais.
Mas há um tipo compulsivo, que sequer espera pelos comerciais. Movido por curiosidade patológica ou insatisfação crônica, ele se entrega o tempo todo à mais absoluta promiscuidade audiovisual.
Em consequência, não vê nenhum programa inteiro, e, como na música do Kid Abelha, sabe de quase tudo um pouco -e quase tudo mal.
O compulsivo sabe, porque bastam 15 segundos para percebê-lo, que a Isabela de "A Próxima Vítima" é má.
No entanto, ainda ignora a que se deve o título da novela: apenas suspeita, baseado nos diálogos que presenciou, que a tal vítima é o sotaque paulistano -ou a lógica.
Sortudo, ele sintonizou a parabólica naquela célebre entrevista, mas achou a conversa prévia muito amistosa, coisa de compadres, e mudou para um desenho animado antes da declaração que derrubou o ministro.
Piores que as eventuais frustrações são seus problemas de relacionamento. Como a compulsão é mais forte que o respeito pelas retinas alheias, mesmo quando está acompanhado ele usa o controle freneticamente.
Inconformada, a família planeja amputar-lhe os polegares, alegando que ele pressente quando vai passar algo de grande interesse para os outros -e muda de canal um segundo antes, o infeliz.

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