São Paulo, segunda-feira, 9 de outubro de 1995
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Qualidade e assistência médica

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK
O conceito de qualidade está tomando vulto em todas as atividades, seja em produtos ou serviços. No fundo, é algo muito simples: qualidade é o que garante ao comprador de um produto ou serviço que o que ele está levando para casa ou usando corresponde ao que o vendedor disse que estava vendendo. Milhares de firmas brasileiras já têm o certificado ISO-9000, que é aferição por entidade acima de qualquer suspeita, e as governamentais comumente não se enquadram neste grupo, que o produto fornecido atende especificações rígidas com desvios destas também limitando-se à faixa adrede definida. Quem não for capaz de executar isso vai acabar restringindo-se, no mercado global, a apenas marreteiros ou seus equivalentes comerciais e industriais, que prometem grandes ofertas do tipo só hoje, pois amanhã pode ser muito tarde. Quando você volta para reclamar não encontra ninguém.
Serviços médicos são perfeitamente mensuráveis, e qualidade pode ser avaliada. Algumas dificuldades acontecem. Médicos odeiam auditoria e alguns dizem que isto é até antiético: onde é que se viu algum outro julgar o que eu ando fazendo, isto é entre mim, Deus e meu cliente. O pobre do cliente com frequência não tem como julgar o doutor. Além disso, qualidade do produto final depende de toda a cadeia que o antecede e ela mede quase sempre o elo mais fraco de tudo; se este falha, o resto foi inútil. Aqui temos faculdades de medicina cuja capacidade de formar médicos é muito pequena, começando com a qualidade inexistente de vários professores. A inadequação continua nas condições dadas aos recém-formados nos prontos-socorros e hospitais, sem recursos laboratoriais e com prontuários de quinta categoria, nos quais ninguém cobra que se escrevam as coisas feitas e os raciocínios, quando existentes, que as embasam. A preocupação persiste na absoluta falta de cobrança das direções dos nossos órgãos de saúde, públicos ou privados, quanto à auditoria da qualidade do que oferecem a seus clientes. Algumas empresas de atendimento médico controlam, e até abusivamente, o número de pacientes que seus médicos atendem, exigindo produtividade numérica, mas não conhecemos nenhuma que avalie pelo menos a satisfação dos usuários. Dos públicos, então, nem falar; trata-se de um deserto nesse aspecto. Prosseguindo, vem a cobrança da qualidade nos recursos que os médicos usam para tratar, tais como remédios e outros meios. Este país até hoje não tem nada equivalente à Food and Drug Administration -FDA-, entidade norte-americana capaz de dizer à sociedade se aquela pílula de 400 mg do produto A tem de fato o produto A com biodisponibilidade adequada. Na verdade um famoso trabalho do Professor Andrejus Korolkovas, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, da Universidade de São Paulo, revelou que muitas das preparações de 400 mg contêm de fato 200, 250, 312, 417 ou outras quantidades variáveis.
No âmbito da assistência médica convivemos presentemente com distúrbios de múltiplas ordens, que urge enfrentar sobretudo com base em bons programas, apoio financeiro suficiente, adequado exercício da política e concreto combate à corrupção. Nesse contexto, controle de qualidade obrigatoriamente deverá ocupar posição expressiva.

Vicente Amato Neto, 67, infectologista, é professor titular e chefe do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP. Jacyr Pasternak, 53, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas.

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