São Paulo, terça-feira, 10 de outubro de 1995
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Bigodinhos lutam contra sorrisos de FHC

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Às vezes o país parece um quadro cubista. Melhor, um Miró. Um "Carnaval de Arlequim". É o caso agora. Está numa entressafra política. Temos o suspense: conseguirão o sorriso de FHC e seu "messianismo cordial" amolecer o coração dos políticos conservadores? Não sei o que vai acontecer, mas vejo imagens na tela do país: de um lado, os bigodinhos dos deputados Prisco Viana e Paes de Andrade e, de outro, o sorriso de FHC. Quem ganha?
Devo confessar: estou fascinado pelo deputado Prisco Viana (PPB-BA). Claro que essa súbita paixão não põe em risco meu antigo amor por Paes de Andrade, mas, agora, depois do parecer de Prisco contra a reforma administrativa, meu coração bate por ele.
"Lá vem ele com sua ironia venenosa", dirão os ciumentos. Não; é amor real. Tenho um carinho folclórico por políticos como Prisco e Paes, assim como, digamos, Luis da Câmara Cascudo gostava do bumba-meu-boi ou do maculelê. Prisco e Paes são uma preciosa floração. Como eles, há muitos no Congresso. Levo-os na memória como um museu particular, como um álbum de flores raras que o Nordeste nos legou.
Não falo da planta bruta de um ACM, por exemplo, um grande cacaueiro de Ilhéus, com altos e baixos de grandeza e maldade, coronel, mas bom administrador da Bahia; não falo de um caudilho como Brizola, incompetente e carismático; não falo dos grandes corruptos (exceção feita, claro, ao grande PC, revolucionário do clientelismo, melhor aluno de Gilberto Freyre); não falo das grandes palmeiras imperiais do mal.
Falo do xique-xique, das ervinhas da caatinga, falo daqueles que trabalham com interesses pequenos, dos roedores que vivem da ignorância dos eleitores miseráveis.
O que me fascina em homens como Paes e Prisco é a doçura da alma brasileira arcaica. Neles, eu vejo preciosas relíquias da cultura, como o boitatá ou o caipora. Estão ali, lambuzados naqueles dois bigodinhos líricos, 400 anos da vida brasileira. Sua fidelidade ao fisiologismo até me emociona.

Biografia
Vejamos Prisco. Todos os governadores estão em pânico. É impossível governar com 90% dos orçamentos estaduais destinados a pagar funcionários. Não dá para construir um metro de estrada, nem abrir um colégio. A reforma administrativa é urgente. Aí, o Prisco é nomeado relator da reforma. Seu parecer é extraordinário. Prisco conclui que não precisa reforma. No que é apoiado (oh, sublime!) pelo PT.
Por conta de meu conhecido primarismo, meu primeiro impulso foi atacar, destruir o Prisco Viana. Corri ao arquivo do jornal, em busca de um crime, um grande escândalo, ou então um vexame kitsch feito aquele em que Paes de Andrade reuniu correligionários e levou todo mundo de avião para a república de Mombaça.
Lá estava a biografia de Prisco. Foi um dos fundadores da Arena, depois do PDS, de onde saiu porque estava arrastando a asa para o lado de Sarney, já no PMDB.
Foi brindado por Sarney com o Ministério da Habitação e Bem-Estar Social, onde seu feito máximo foi contratar o enteado Mauricio Brasilino Leite, 17, para ser o fornecedor de passagens para o Ministério, para a CEF e para a Secretaria do Meio Ambiente, por intermédio de sua empresa MLF Turismo. Criticado por nepotismo, não achou nada demais no caso e disse que nem sabia da contratação, que teria sido feita por seu chefe de gabinete, Silvio Rômulo.
Depois temos o que em sua biografia? A mãozinha dada ao irmão David Prisco Viana, para ser assessor da presidência do Conselho Nacional de Trânsito, bom maninho que declarou aos jornais que, "graças ao irmão, levava uma vida mansa no funcionalismo público, sem ponto, sem serviço".
Temos outro escandalozinho menor (sempre homem de pequenas causas), quando a sogra Alexandrina Lucas de Carvalho usou máquinas e caminhões do DER do DF para pavimentar as estradas de sua chácara em Brasília. Pouco depois, ACM deu-lhe flechadas monumentais porque Prisco teria usado a máquina do ministério para eleger prefeitos do seu grupo, contra os interesses de ACM.
Prisco perde o ministério, coberto de elogios por Sarney.

Xique-xique
Então, caí em mim. Eu tinha pensado que encontraria grandes crimes. Nada. Prisco Viana não tem esta grandeza no mal. Não é mandacaru; é xique-xique. Prisco é contra as reformas por apego ao passado, a uma tradição nordestina romântica como, digamos, o amor à rapadura, aos violeiros, ao papo dos alpendres, tudo aquilo que faz a existência rural doce e boçal.
Prisco honra seus antepassados escravistas que andavam de rede pela roça, carregados por escravos e que, depois da Abolição, começaram a política dos "favores" aos homenzinhos "livres", distribuindo cargos, pequenos empregos em troca de fidelidade, serviços caninos e votos. Está tudo lá nos livros. Está em Roberto Scharwcz, em Sergio Buarque.
Prisco é a encarnação de um cacoete secular agrário. Seu bigodinho se arma em guirlanda com o bigodinho de Paes de Andrade, enganchados no bigodão dominante de Sarney. Aliás, a dialética do bigodinho nordestino devia ser matéria de estudo, aquele ornamento inatual, nostálgico, pontuando cabeças chatas e carecas, signo do poder de feios e anões.
Sou fascinado por essa força paralítica, esse melaço de engenho que tempera o reacionarismo nordestino. Como disse, não me impressionam os grandes malvados.
Fascinam-me os pequenos assassinatos, o prejuízo espantoso de bilhões que nos dão os psicopatas "light", com seus viadutos interrompidos, grãos-poderes e hospitais inacabados. As caras de Paes e Prisco parecem quadros históricos do século 16. A ciência, o século 20 não passaram por ali. Nunca o vento da história moderna desmanchou seus bigodinhos.
Paes de Andrade é outra preciosidade de nosso folclore. Agora que é presidente do PMDB, vai fortalecer a "indústria da chantagem" contra as reformas. Simples.
A urgência das reformas é um ótimo instrumento para a conquista do poder pelo "não". "É preciso reformar isso assim, assim? Pois sou contra, a menos que...."
Paes é um xique-xique também, só que a serviço do grande cáctus imortal que é Orestes Quércia, este sim grande industrial da chantagem política, homem que emana um olor magnético, que seduz nossos pequenos políticos com seu charme de "capo" mafioso, de fênix renascida da corrupção.
Diante desses homens, me sinto um babaca, um romântico. Pensei até em perguntar a Prisco: "Mas, deputado, depois de tantos anos de vaidades satisfeitas, fortunas acumuladas, eleições vitoriosas, não há em Vossa Excelência o desejo "chic" de participar dessa reforma administrativa e filosófica para o Brasil? Não há o desejo de modernizar o Nordeste, caatingas em flor, leite para as crianças, verbas tiradas de vagabundos e parasitas para a comida dos pobres, para a reforma agrária, irrigação?".
Mas parei. Subitamente, entendi a beleza poética do pequeno nordestino. Como pedir a um homem como Prisco, que vela pela mediocridade de nossa vida, que zela pelo Nordeste colonial, que cultiva o atraso para garantir seus votos, que faça a reforma administrativa?
Com ela, uma imensa massa de dinheiro seria desbloqueada para salvar o Nordeste. Mas, aí, com o progresso, para onde iriam os pobres eleitores de Prisco, a eterna recorrência da seca, o doce ritmo dos miseráveis, os conchavos nas boticas e currais e toda uma rica temática de tragédia e fome que inspira a arte de outros defensores do atraso como Ronaldo Cunha Lima, em seus sonetos sociais?
Ainda bem que alguém vela pela poética do subdesenvolvimento. O país inteiro, toda a modernidade cessam diante de homens como Paes e Prisco. Seria muito melhor, sonham Prisco e Paes, um imenso país de funcionários públicos. Todos seríamos contratados, acabaria o problema do desemprego e dormiríamos para sempre em nossas redes, ao som da violinha da nossa miséria.

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