São Paulo, segunda-feira, 16 de outubro de 1995
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A intolerância e as reformas

LUÍS NASSIF

A intolerância começa a se tornar grave no país. Não é apenas o fenômeno das torcidas organizadas de futebol ou os ensaios de guerra religiosa na televisão. Hoje em dia, são raros os debates públicos em que uma das partes não procure desqualificar a parte contrária, rotulando argumentos, insinuando interesses ocultos e apelando para o repertório ao qual recorrem em geral aqueles que não dispõem de conhecimento e talento para defender suas próprias idéias.
O que está ocorrendo neste momento com a reforma administrativa é sintomático desse clima inquisitorial.
Há pessoas de respeito dentro do Congresso -como os deputados Prisco Viana e Roberto Magalhães, e o senador Josaphat Marinho- que consideram que o fim da estabilidade fere direitos adquiridos do funcionalismo público.
A coluna os considera políticos respeitáveis, entende suas razões, mas pensa de maneira diferente. É tão difícil assim praticar a democracia?
O que provavelmente está por trás das resistências dos parlamentares é o conhecimento agudo do estilo político dominante no país.
Desde o Império, o serviço público foi utilizado politicamente por todos os grupos que empalmaram o poder. Esse estilo resistiu até ao advento do concurso público, com a criação do Departamento de Administração do Serviço Público (Dasp) por Vargas.
Como a alternância de poder ainda não é um valor plenamente aceito pela cultura política pátria, enquanto governo, cada qual trata de perpetuar o espaço conquistado por seus apaniguados, por meio de instrumentos legais.

Estabilidade
Ao considerar estáveis todos os funcionários públicos contratados nos cinco anos anteriores à sua promulgação, a Constituição de 88 nada mais fez do que dar vazão a esse estilo.
Com todos esses vícios, no entanto, a estabilidade é a maneira de impedir que novos governantes continuem a exercer esse poder arbitrário.
Não se está falando do departamento de recursos humanos de uma empresa moderna, preocupada com resultados, mas da realidade política brasileira, nua e crua.
O fim da estabilidade certamente será manipulado por muitos governadores, menos para indicar afilhados políticos para o lugar dos futuros demitidos -já que a lei determina que cargo extinto não será recriado por um prazo dilatado-, mas como poder de pressão, para cooptar funcionários e afastar adversários.
O processo de demissão organizado pelo governador paulista Mário Covas, sem olhar RG e título de eleitor do demitido, ainda é uma exceção no panorama político brasileiro.

Pacto político
Desse ponto de vista, as preocupações dos parlamentares são legítimas.
Por outro lado, não haverá a menor condição de modernizar o Estado brasileiro e implantar uma gestão eficiente, nem sequer haverá condições de recuperar a capacidade de investimento do Estado, sem um amplo processo de reestruturação do serviço público -no qual a flexibilização da estabilidade é fundamental.
Trata-se de uma constatação irrefutável, comprovada pelo próprio comprometimento da arrecadação com a folha.
Como homens públicos responsáveis, parlamentares e governo têm de sentar e entender as razões de lado a lado. Da parte dos parlamentares, a constatação da impossibilidade de ficar tudo como está. Da parte do governo, o reconhecimento das preocupações dos parlamentares, e a discussão visando aprimorar a legislação, cercando ainda mais as possibilidades de arbítrio na reestruturação da administração pública.
O projeto Bresser Pereira (que será analisado oportunamente pela coluna) tem muitos méritos e atende parte dessas preocupações. Mas pode ser aprimorado. E é para isso que existem a democracia e os valores políticos.

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