São Paulo, segunda-feira, 16 de outubro de 1995
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Quebra-cabeças

JOÃO SAYAD

"O Estado de S.Paulo" de 10 de outubro: o Senado americano não quer aprovar uma dívida maior do que US$ 4,5 trilhões para o Tesouro dos Estados Unidos. O secretário do Tesouro, Lawrence Summers, afirma que se isso acontecer o Tesouro terá que pedir moratória. A dívida americana representa cerca de 70% do produto nacional daquele país.
"Gazeta Mercantil" do mesmo dia: Bélgica não pode entrar na União Européia enquanto a dívida mobiliária do país representar mais do que 130% do produto belga.
A dívida interna brasileira atingiu o saldo de US$ 85 bilhões e a dívida externa, de US$ 86 bilhões -no total, US$ 171 bilhões-, sem descontar o saldo de reservas internacionais (US$ 48 bilhões).
A dívida brasileira interna representa menos que 15% do produto brasileiro. A dívida externa, outros 15%. As duas juntas, menos que 30% do produto. Se descontarmos as reservas, as duas juntas representam cerca de 20% do produto.
Essas notícias parecem peças de um quebra-cabeça que não se encaixam na análise que tantos fazem sobre o Brasil. Não cabem direito, não têm nada a ver com o que está escrito e falado em tantos jornais por tantos políticos e economistas.
As notícias rebeldes e indisciplinadas dos jornais suscitam muitas perguntas:
1) Será que o Brasil pode ter uma dívida maior do que 20% do produto? Ela pode ser de 70% do produto, como nos Estados Unidos, ou de 130%, como na Bélgica? O governo pode tomar mais US$ 249 bilhões emprestados e gastar, ficando igual aos Estados Unidos? Ou tomar emprestados mais US$ 609 bilhões e ficar igual à Bélgica?
Será que o governo poderia gastar a mais todo esse dinheiro, sem aumentar impostos, em mais estradas, escolas, saúde, bolsas para alunos no exterior, contratação de talentos para o setor público?
2) E a história de que o verdadeiro problema do Brasil é a reforma do setor público, que gasta muito e deve muito? E a privatização vista como salvação das contas do governo?
3) A nossa dívida de US$ 171 bilhões representa todos os déficits públicos acumulados pelos governos militares, peemedebistas, Collor, Fernando Henrique Cardoso, governos estaduais, municipais, honestos e desonestos. Somando tudo, dá esse valor, menos que 20% do produto brasileiro. E como fica a visão de que o problema do Brasil é o déficit público?
4) Por que muitos dizem que a taxa de juros só pode cair quando o déficit público cair?
5) Será que o problema é de financiamento, como diz o ex-ministro Simonsen -ou seja, que nossa dívida é relativamente alta porque ninguém quer financiá-la? Isso pode ter sido verdade na época do presidente Collor, quando todos tinham medo de um calote que aconteceu. Mas hoje, com inflação baixa e o sucesso do Plano Real, quem tem medo de financiar o governo? É melhor dar empréstimos para o governo ou para as empresas, depois dessas duas ou três quebradeiras que aconteceram?
6) Será que o problema da dívida brasileira é que ela cresce muito rápido, de US$ 40 bilhões para US$ 85 bilhões em um ano? Mas o crescimento não vem de gastos do governo maiores do que impostos arrecadados. Ela cresceu porque compramos dólares no exterior, que estão bem guardados no Banco Central, e porque os juros têm sido muito altos. Como se resolve a charada: os juros são altos porque a dívida cresce muito rápido porque os juros são altos?
7) Déficit público é o aumento da dívida do governo. Déficit privado é o aumento da dívida do setor privado. Quando a Vale do Rio Doce lança um bônus em Nova York pagando juros de 8% ao ano, com prazo de dez anos para pagar, aumenta a dívida pública e, portanto, é déficit público. Quando a IBM lança uma debênture, aumenta o déficit privado.
Li no "Estado e na Folha que, em setembro, o governo teve rombo de x milhões de dólares. Por que os jornais chamam déficit de rombo? Será que as palavras não fazem diferença? Podemos ir ao mercado financeiro e anunciar o lançamento de um rombo que paga 40% de juros ao ano, sem risco e com liquidez garantida?
São perguntas que me fazem pensar. Nas ciências humanas, como a sociologia e a economia, os cientistas parecem Sherlock Holmes que olham com uma grande lupa as suas próprias pegadas, como se fossem pistas do criminoso.
No começo do século, sociólogos acreditavam fortemente nas variáveis raciais e, otimistas, diziam que o Brasil não tinha um problema com os negros, pois iríamos branqueando gradativamente com os casamentos inter-raciais, enquanto os americanos se preocupavam, pois acreditavam que iriam enegrecendo por meio dos mesmos cruzamentos entre negros e brancos. Ambos tinham razão.
Graças a Deus, passamos dessa fase. Agora estamos na fase do déficit público. Os números não confirmam a idéia de que o problema brasileiro é o déficit público. Esses números, entretanto, não têm importância em ciências sociais. Os números estão contra a idéia, mas é a idéia que tem razão.

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