São Paulo, segunda-feira, 16 de outubro de 1995
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Atriz faz a tragédia da delicadeza frente à guerra

"Ricardo 2º

NELSON DE SÁ
DO ENVIADO ESPECIAL A LONDRES

Nada mais apropriado, em Londres hoje, do que um ``Ricardo 2º" interpretado por uma mulher. Lesbianismo e ``cross-dressing" estão nas ruas, na televisão, nos clubes, em toda parte.
No programa da peça, chegam a citar com aberta ironia o Freud de 1905, na observação de que ``quando você encontra um ser humano, a primeira distinção que faz é `homem ou mulher' e você está acostumado a fazer a distinção sem hesitação". Não mais, em Londres, onde as mulheres têm agora a sua própria versão ``drag", nos clubes.
Estranhamente, porém, o Ricardo 2º de Fiona Shaw, talvez a maior atriz do palco britânico na atual geração, posterior àquela das grandes damas como Maggie Smith ou Vanessa Redgrave, é acima de tudo feminino.
A atriz, que é irlandesa, por sinal, aproveita a deixa de um rei fraco, ou geralmente visto como tal, e faz da peça uma tragédia do feminino, diante das armas, da guerra, da violência.
Para buscar uma outra citação do programa, desta vez de Hugh Whitemore, ``no longo prazo, não é quebrar o código que importa -é para onde ir, de lá. Este é o verdadeiro problema." A atuação de Fiona Shaw, sem discursos, sem feminismo, aponta para onde ir, agora que os códigos foram todos quebrados há tempos.
``Ricardo 2º" lembra uma montagem de ``As You Like It" apresentada em São Paulo há quatro anos e que iniciou uma gigantesca onda shakespeariana no Brasil. Dirigida pelo também irlandês Declan Donnellan, tinha todos os papéis, inclusive as mulheres, interpretados por homens.
A atuação de Fiona Shaw e a encenação de Deborah Warner -não por coincidência, uma das diretoras mais celebradas, também de uma nova geração britânica, de Donnellan e Stephen Daldry- seguem no mesmo caminho da delicadeza de gestos e sensações.
Apresentada no teatro com platéia móvel do Royal National Theatre, a peça é vista em forma de arena, com grande proximidade entre público e elenco, o que torna a interpretação de Fiona Shaw ainda mais impressionante, quanto aos detalhes.
Em três horas e meia (a diretora é purista, não admitindo cortes nos clássicos que encena) o que se vê é menos o jogo de poder de Henrique, o primo de Ricardo e usurpador do trono, e mais o gigantesco amor de Ricardo por Henrique, com quem ele foi criado desde criança.
Henrique é interpretado por um ator, David Threlfall, o que torna as distinções sexuais absolutamente contraditórias, como quer a montagem, claramente.
O que se vê é o mais completo desconforto emocional e o mais desastroso desajuste de um rei, incapaz da violência e paralisado diante dela.
Uma cena em particular, aquela em que Ricardo abdica do poder, é das maiores já vistas pelo crítico. Entre a extrema insanidade e a extrema razão, Ricardo se entrega, abdica e Fiona Shaw é aplaudida em cena aberta.
(NS)

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