São Paulo, segunda-feira, 16 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

`Você Decide' devia ir além do sim ou não

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Uma equipe do ``Você Decide" passou lá em casa. Joana trabalha numa fábrica e descobre que sua empresa está poluindo uma represa. A equipe do ``Você Decide" pergunta: denuncia ou não denuncia?
Minhas meninas vieram ver a entrevista. Se Joana denuncia, perde o emprego. Se Joana não denuncia, é promovida, compra um carro, vai à Disney e passa a andar com um celular, como todas as pessoas que são promovidas.
Minha resposta foi bem-recebida pela equipe mas acabou não servindo para o programa. Joana poderia denunciar, sem perder o emprego. Bastaria entrar em contato com um jornalista ou um parlamentar de confiança.
As meninas pensavam diferente. A menor sustenta que a hipótese de não denunciar seria ganhadora:
-Sempre que alguém pode ficar milionário, a proposta que ganha é a de ficar milionário.
A maior não aceita o argumento:
-Joana tem de denunciar, embora a gente saiba que, na maioria dos casos, as denúncias dão em nada.
Enquanto os operadores do ``Você Decide" condicionavam seus equipamentos e possivelmente sonhavam com o próximo dilema, lembrei-me dos soldados da Primeira Guerra Mundial que tinham ordens para atirar.
Se recusassem, seriam condenados pela corte marcial; se aceitassem matariam gente, numa estúpida batalha. Solução: atiraram para cima, escapando das penalidades.
Esse exemplo dos soldados estava num pequeno livro de Paul Watzlawick, o psicólogo que durante muitos anos estudou a propensão humana de cavar a própria infelicidade.
Watzlawick tenta estimular, através de um roteiro irônico a busca de uma terceira via, sobretudo quando todos os indícios fazem crer que "tertium non datur.
Sua principal preocupação é a de evitar saídas do tipo ``a operação foi ótima, mas o doente morreu". O livrinho de Watzlawick chama-se ``A Solução de Hecate", usando o nome da deusa que montou a armadilha para Macbeth.
O foco da crítica se concentra nos chamados jogadores de um jogo de soma zero, cujo exemplo mais simples é uma aposta entre duas pessoas. A perda de R$ 50 por alguém significa o ganho de R$ 50 por outra. Ganho e perda ficam indissoluvelmente ligados, uma é impensável sem a outra.
Jogar esse jogo significa acreditar que em todas as situações da vida emergem somente duas possibilidades: ganhar ou perder.
O personagem do livro é um senhor Caccivillani, um jogador fanático. Um dia, ele esqueceu o farol de seu carro aceso e caminhou quase 300 metros. Um homem veio correndo atrás dele e avisou que o farol estava aceso.
Caccivillani entrou em crise. O que aquele cara ganhava correndo quase 300 metros para avisá-lo sobre o farol aceso? A partir daí, começou a se sentir responsável por ajudar os outros. Ao achar um saco de moedas, devolveu ao dono, que, por sua vez, também era um jogador, e perguntou:
-Mas o que você ganha com isso? Só mesmo um maluco me devolveria as moedas.
Watzlawick observa que, no entanto, o desconhecido que avisou sobre o farol tinha começado uma reação em cadeia. E adiante afirma que existe uma cadeia de gente fazendo coisas boas, às vezes até sem se dar conta disso.
No sábado seguinte, nos reunimos para ver ``Você Decide". A menorzinha tinha razão: venceu a proposta que apontava para mais dinheiro. Mas a opinião da irmã também indicava algo importante: o que adianta denunciar, se nada acontece depois da denúncia e a poluição da água continua a mesma?
Diante de tantas nuances num mesmo sábado, é razoável sugerir que ``Você Decide" abre ao lado do sim ou não um espaço para outros -isto é, respostas que apontam para uma terceira via.
O primeiro roteiro a inaugurar a nova fase poderia envolver um seguidor de Mani (216-276) fundador de uma religião gnóstica universal, que na sua época quase suplantou o cristianismo.
Chamaríamos o personagem de Maninho. Ele volta de uma curta viagem e descobre que a mulher e o melhor amigo...
Voltaria as costas para os dois? Fingiria que nada viu para não perder a mulher e o amigo? Sim ou não, ou outros.
Esse espaço para outros pode não só estimular a capacidade dramática dos espectadores mas também desfazer alguns dos nós que Watzlawick aponta como decisivos na busca da infelicidade humana.
A idéia de que o contrário de alguma coisa má é sempre boa é tese que às vezes devasta a capacidade política da oposição. Ou mesmo a idéia do que o dobro de alguma coisa positiva é o dobro do bem como o paciente do livro de Watzlawick que tomou um remédio para sua doença, começou a melhorar e resolveu dobrar a dose, terminando num hospital, com sintomas de intoxicação.
Watzlawick apenas tornou populares algumas das pesquisas sobre as situações de comunicação, com as quais os seres humanos se complicam.
O "double bind é um desses instantes comunicativos em que você recebe duas ordens contraditórias, de forma que obedecendo a uma é forçado a desobedecer a outra.
Quando essas situações invadem a vida da criança, ela pode se tornar doente mental aos olhos dos outros mas está apenas tentando se desvencilhar criativamente das armadilhas do "double bind.
Daí minha reinvidicação: se ``Você Decide" abrir uma terceira janela, não precisaremos cair na esquizofrenia do double bind. O que acham disso? Sim, não, outros?

Texto Anterior: ``Négrabox" explora distorção da realidade
Próximo Texto: Rê Bordosa retorna em novas histórias de sexo, cigarros e vodka
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.