São Paulo, sexta-feira, 20 de outubro de 1995
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Godard faz auto-retrato de dinossauro

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Jean-Luc Godard já foi o cineasta da modernidade, o revolucionário da linguagem, o "enfant terrible" que mudou a cara do cinema mundial. Como os anos 60 estão cada vez mais distantes, todas essas imagens um tanto vagas, com cheiro de lugar-comum, agora parecem peças de museu.
Godard, hoje, é apenas um fantasma incômodo no reino de Spielberg. Godard parece saber disso muito bem. "JLG por JLG - Auto-retrato de Inverno" não foi feito no torvelinho parisiense, mas na solidão de uma Suíça que parece mais um lugar de exílio. De solidão.
O inverno: Godard percebe muito bem que não há mais lugar para ele neste momento de indústria cultural triunfante. Excludente. Resta-lhe o direito de morrer gritando e afirmar ainda uma vez o direito de fazer cinema sem concessões, como um artista.
Este é, em boa parte, o significado do prêmio Theodor W. Adorno que lhe foi concedido este ano na Alemanha.
Este é também o ponto central da reflexão que se desenvolve em "JLG por JLG." Existe a regra, diz Godard. A regra é tudo: a guerra, o turismo, as camisetas. E existe a exceção. A regra é a cultura. A exceção é a arte. E a regra quer por natureza, sustenta Godard, a morte da exceção.
Pode-se pensar em um auto-retrato paranóico. Não é verdade. "JLG por JLG" é uma espécie de manifesto discreto contra a mitologia do Godard incompreensível que se instalou na cultura cinematográfica de alguns anos para cá.
Godard não é incompreensível. É, antes, um artista que rejeita os sentidos dados, que identifica com a tirania. Mas, se seguirmos sua obra, poderemos ver -longe de simbolismos obscuros, tão frequentes no "cinema de arte"- uma clara postulação documental. Ano a ano, ali estão expostas as modas, as idéias, as angústias daquele momento. Nada obscuro.
Como aqui, em "JLG por JLG", é presente a preocupação com o poderio americano (não só no cinema), com os sistemas de identidades que -mesmo quando se postulam democráticos- impõem um sentido obrigatório às coisas.
Nesse sentido, Godard é um dinossauro para quem a arte é o negativo da cultura, a exceção que desmonta as expectativas, ousa, experimenta.
Por esse lado, também, "JLG por JLG" pode ser visto como "mais um filme difícil". É quase impossível não se deixar levar -a cada novo filme do cineasta- por uma espécie de nostalgia. Ou pela frustração de não estarmos vendo um novo "Viver a Vida" ou "O Desprezo", ou "Alphaville".
Mas é uma frustração que que se pode reverter -sem sofrimento, até com prazer. Primeiro, é bom lembrar que estes filmes continuam vivos.
Em seguida, basta não embarcar na viagem de "JLG por JLG" como o usuário que compra seu ingresso e quer ver, na tela, o valor desse dinheiro. Quanto a isso, Godard é jacobino. O que aparece na tela é o filme não-mercadoria. Seu valor é de uso, não de troca.
Isto posto, o cineasta nos coloca diante de uma sucessão de imagens límpidas, belas (como as dos anos 60), em que faz seu "auto-retrato" não autobiográfico.
São imagens invernais, saturadas de uma solidão que não surge ali como forma de piedade, mas como constatação: é o negativo, de onde sai o positivo. É o Inverno, mas nem sempre: há, ali, também, um anúncio de Primavera. Godard não está morto.

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