São Paulo, sexta-feira, 20 de outubro de 1995
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'Kids' joga bomba emocional sobre a platéia

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Falar da disseminação da Aids entre adolescentes, alertar para o consumo excessivo de drogas, mostrar a miséria espiritual, a decadência da família, a impotência do poder público nas grandes cidades, tudo isso é importante e serve, como se costuma dizer, como "alerta para os pais e educadores". Mas o filme "Kids", de Lary Clark, exagera um pouco na dose.
Destina-se, basicamente, a criar polêmica, a suscitar debates entre autoridades, sociólogos, pedagogos, sacerdotes; e ajuda às entidades de prevenção à Aids com o barulho que cria em torno do tema.
Fora isso, trata-se de um filme bastante ruim, sensacionalista e sem imaginação. Telly, um garoto de 15 anos no máximo, tem como principal atividade desvirginar suas amiguinhas. Uma delas descobre estar contaminada pelo HIV; Telly tinha sido seu único parceiro, e ela passa o dia à procura do garoto, que já está conquistando outra menina.
É um enredo bastante simples, esquemático até. Mas poderia resultar num grande filme, não fosse... não fosse um monte de coisas.
Telly e seus companheiros não despertam nenhuma simpatia; estão ali para provocar consternação, escândalo no espectador. É um pouco como se a dupla debilóide do desenho animado da MTV, Beavis e Butthead, ganhassem carne e osso. Saber pelo filme que um deles está com Aids pode ser terrível, mas o fato de eles existirem não é necessariamente uma melhor notícia.
"Filadélfia", com seu comercialismo todo, é um filme que emociona mais. Claro, o cinema americano sabe fazer isso, e não dispensou, neste caso, o clássico recurso às cenas de julgamento, torcidas para que a justiça triunfe etc.
"Kids" é um filme mais desonesto esteticamente do que "Filadélfia"; finge não ser apelativo e edificante, parece fugir às emoções baratas, para ser apenas mais sensacionalista, moralizante e falso.
Não que as coisas que são mostradas em "Kids" não sejam verdadeiras. Tudo aquilo deve acontecer, nos Estados Unidos e em outras partes do mundo: crianças de sete anos entupidas de maconha, orgias, desregramentos. O crack, o haxixe. O prazer em espatifar a cabeça de um sujeito a golpes de skate. Pobreza mental, assaltos, rock, ressacas.
O problema é que, mostrando coisas verdadeiras, o filme é falso. Seu título -"Kids", "Garotos"- simula, na sua brevidade desinformativa, um tom distanciado, uma narrativa fria de fatos contundentes. Os movimentos de câmera seguem a mesma intenção: passam rapidamente, sem cortes, de um personagem a outro, como se captassem com nervosismo de telejornal uma realidade que acontece naquele exato instante.
O filme inteiro afeta uma neutralidade de documentário, uma improvisação de recursos, um "verdadeirismo imparcial", quando sua intenção mais patente é provocar escândalo. Cada cena parece estar acompanhada de um ponto de exclamação entre parênteses: poderia muito bem ter Gil Gomes como narrador em "off. A narração foi suprimida. Gil Gomes não é ouvido, mas é como se estivesse ali.
Não há personagens convincentes, mas apenas palavras com letras maiúsculas: o Traficante, o Vício, a Inocência da Juventude, a Decadência dos Costumes, a Desagregação da Família, a Droga, o Sexo.
O resultado é uma certa obscenidade escandalizada, uma mistura entre a missão cívica de denunciar as coisas e o prazer de jogar uma bomba emocional sobre a platéia. Disfarça-se com uma nitidez pseudo-jornalística uma reprovação moral que seria correta se não fosse também pretexto para filmar, com volúpia mal disfarçada, os excessos que o filme condena.
É um pouco como aqueles antigos filmes bíblicos, que alguém já disse estarem muito mais interessados em mostrar cenas de sadismo e orgias romanas do que em divulgar as beatitudes do Evangelho.
Mas minha reação negativa também pode ser posta sob suspeita. Talvez eu tenha detestado tanto o filme apenas por repulsa às realidades que ele mostra. Critico-o para não encarar aquilo de que trata.
Nesse ponto, nem é exatamente o tema da Aids o que mais chama a atenção em "Kids". Mesmo se não estivessem contaminados, aqueles garotos provavelmente não viveriam muito tempo: estariam mortos de overdose ou de bala perdida num conflito de gangues. Não é um consolo, claro, mas o raciocínio talvez mostre que o enfoque de "Kids" parece um pouco deslocado; com menos preguiça, seus autores imaginariam uma história com diversas personagens encontrando, cada uma, destinos diferentes mas igualmente trágicos.
Talvez seja impressão minha, mas não apareceu até hoje um filme-denúncia realmente forte sobre as drogas. Da mentalidade dos anos 60-70, quando drogas pareciam abrir perspectivas de percepção e sensibilidade para o homem ocidental, aos dias de hoje, em que viraram epidemia violenta e muitas vezes mortal, tudo mudou muito, e parece haver resistências a tratar do assunto.
Não quero escrever discursos moralizantes sobre isso. Noto apenas que "Kids" fala de outras doenças que não a Aids; uma estupidez endêmica, uma agressividade gratuita, uma falta do que fazer, uma vontade de destruir os outros e a si mesmo, está em jogo no comportamento daqueles garotos.
Existe hoje uma doença lobotomizadora qualquer, transmitida pela TV, pelos video games, pelo rock, pela alimentação rica em proteínas, pelos patins, pelos pais, pelo telefone, não sei. "Kids" retrata essa doença. Mas como os desenhos de "Beavis e Butthead", parece ao mesmo tempo ser um sintoma da doença que retrata.

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