São Paulo, segunda-feira, 23 de outubro de 1995
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Integração racial nos EUA é quase utopia

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O imenso comício afro-americano e masculino em Washington é o evento mais impressionante e significativo dos últimos anos e aponta, no seu cenário, para uma virada tão radical quanto o colapso do comunismo e a eclosão da guerra civil iugoslava. O movimento americano dos direitos civis foi contemporâneo da Primavera de Praga. Talvez em breve o programa de uma integração racial pacífica nos EUA pareça tão utópico ou irrealista quanto o "socialismo com face humana" ensaiado então pelos tchecos.
O comício foi importante o bastante para o presidente do país ter que apresentar, concomitantemente, sua contraproposta que, se se revelou morna, expressou seguramente o reconhecimento do problema. Este é simples: brancos e negros formam atualmente, nos EUA, dois países diferentes e em conflito.
Pelo menos para os participantes do evento, o conflito é ou se tornou irresolúvel. Além disso, Louis Farrakhan desponta hoje como a liderança mais carismática do país. Seu movimento é conservador, mas não conformista, com tinturas claramente fascistas. E ele tem boas chances de se tornar o líder indiscutível dos negros americanos.
Mas o que conta no comício não é só o fato de que se trata, como se diz no jargão militar, de um "contra-ataque preventivo" em face da provável vitória republicana nas próximas eleições. O mais relevante, talvez, é que tenha sido um comício apenas para homens -e isso representa a declaração mais explícita possível de ruptura com o consenso liberal segundo o qual as minorias étnicas (negros, hispânicos etc.), sexuais (gays e lésbicas) e sobretudo as mulheres são igualmente vítimas da opressão de uma minoria de homens brancos caucasianos, estando assim, basicamente, no mesmo barco.
No comício em questão, o conjunto mais coeso e organizado de negros disse "não" aos seus supostos aliados de ontem.
Quem não quiser entender a mensagem, que reconsidere o acontecimento preparatório, em termos de mídia, do comício, ou seja, o "julgamento do século" de O. J. Simpson. Ao que consta, a promotora Marcia Clark aceitou a composição do júri presumindo que mulheres negras condenariam um homem, mesmo que negro, desde que houvesse provas de que ele matou uma mulher, mesmo que branca. Elas, no entanto, parecem ter explicitado que são primeiro negras e só depois mulheres.
Se essa posição acarretou, segundo muitos, um veredicto injusto no tribunal, ela decorre de uma avaliação "politicamente incorreta", mas correta em termos políticos. A avaliação é a de que os problemas dos negros e os das mulheres são incomensuráveis.
Os problemas das mulheres geram teses ilegíveis nos departamentos universitários, os dos negros, miséria, crime, prisão. As mulheres reclamam de estupros verbais, visuais, conceituais. Os jovens negros morrem baleados ou esfaqueados nas ruas. As conquistas femininas, na sua maioria, são reais; as de 2/3 dos negros, formais. Pior do que isso, desde os anos 70, o movimento feminista vem desapropriando as reivindicações urgentes dos negros em prol das suas próprias, nem sempre tão prioritárias.
Compare-se a situação americana com a brasileira. Marta Suplicy propõe uma quota feminina de 30% no Congresso Nacional. Por que não aceitá-la? Em vez dos deputados, serão eleitas suas mulheres, irmãs, amantes, filhas. E as mesmas famílias -pefelistas ou petistas- continuarão o trabalho. Mas uma quota igual de negros teria chances de ser aprovada?
Acontece que as mulheres são, em geral, 50% da população em qualquer lugar do mundo e pertencem a todas as classes, enquanto os negros americanos são apenas 10% e concentram-se nas camadas mais pobres.
Mesmo os gays e as lésbicas, se prestarem à sociedade a homenagem da hipocrisia e mantiverem a discrição, ascenderão aos mesmos cargos e posições a que chegariam se fossem heterossexuais. Assim, as reivindicações femininas e homossexuais vêm se mostrando consideravelmente mais negociáveis nos EUA do que as negras.
Farrakhan poderá não ajudar em nada os negros norte-americanos, mas o modo como organizou seu comício evidencia que, para seus seguidores, (1) um inimigo (aparentemente) comum não é mais base para qualquer tipo de aliança; (2) que só uma questão conta: a étnica; e (3) que, em lugar do ideal da integração racial, a proposta do momento é, como, aliás, na Iugoslávia, de separação ou, digamos, de des-integração.

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