São Paulo, segunda-feira, 30 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A crise e a sirene

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Houve tempo em que morei no Posto 6 e pediram-me uma crônica sobre aquele trecho de Copacabana, na época o mais tranquilo da praia. Ali moravam o romancista Guimarães Rosa e o poeta Drummond de Andrade. Esbarrava com Rosa todos os dias, eu indo à praia com minhas filhas e ele de branco, gravatinha borboleta vermelha, cara lavada de primeira comunhão, a caminho para o Itamarati.
De Drummond era mais vizinho: os fundos de nossos apartamentos quase se tocavam. Além de vizinho, era meu colega no "Correio da Manhã", volta e meia dava-lhe carona e nos fins-de-semana comíamos uma pizza no "Cesare", uma família de italianas gordíssimas que explorava a entrada de uma garagem com uma cantina artesanal e gloriosa.
Pois na crônica que me encomendaram falei em Rosa e Drummond. E num sujeito que todos os dias, aí pelas sete horas da manhã, acordava o bairro gritando pelas ruas: "Olha a crise! Olha a crise!" Nunca ninguém olhava para a crise que o homem anunciava com um certo pavor. Era uma espécie de ponto eletrônico, sabia-se que o dia estava começando, que o mundo despertava para uma nova etapa de sua história. E como nada de novo acontece debaixo do Sol, a crise anunciada era a mesmíssima da véspera.
O diabo é que ninguém sabia quem era o cara. Rosa garantia que o sujeito não existia, nós é que ouvíamos nossa própria consciência gritando pela crise e pensávamos que havia alguém pelas ruas fazendo a mesma coisa. Drummond acreditava no sujeito, achava que era um sábio, um profeta, um emissário do sobrenatural que vinha matinalmente nos dar o recado e nos prevenir contra as ciladas do dia que chegava.
Mudei para a Lagoa, Rosa e Drummond morreram. Outro dia, fui comprar peixe naquela colônia de pescadores bem no final do Posto 6. Quando voltava para o carro, reparei que eram 7h. Procurei ouvir o grito antigo. Ouvi foi a sirena do carro da polícia avisando que a avenida Atlântica entrava em regime de mão única. Sinto falta de Rosa e do Drummond para me explicarem o que tudo isso significa.

Texto Anterior: Um refém no Planalto?
Próximo Texto: Coitados dos ricos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.