São Paulo, quinta-feira, 2 de novembro de 1995
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A que falta era melhor

MOACYR SCLIAR

- O que acha você dessa mulher que perdeu duzentos e tantos quilos? -perguntou ele, lendo a notícia na Folha.
Era um homem baixinho e magrinho, portanto não havia risco de que minha resposta despertasse falsas esperanças. É um triunfo dietético, eu disse, um estímulo para outras pessoas nessa situação. Para minha surpresa, contudo, ele não parecia partilhar desse entusiasmo. É verdade, suspirou, há dietas que fazem milagres. Senti que uma história triste ocultava-se atrás de sua apatia, mas não quis perguntar a respeito. Foi ele mesmo quem -depois de esvaziar o copo de cerveja- me contou:
- Ela era gorda, ela era imensa, mas eu a amava. Não, eu não a amava apesar de ela ser gorda, imensa; eu a amava justamente porque ela era gorda, imensa. Riam de nós, debochavam, mas eu não me importava, porque a amava, e cada minuto passado com ela era um instante de felicidade.
Tomou mais um copo de cerveja, e continuou:
- Você não imagina como ela era fofa, como era macia. Eu tinha a impressão de que ia sumir nas dobras da gordura dela e era isso mesmo que eu queria: sumir nas dobras de sua gordura, ficar ali no macio, no quentinho, para sempre. Mas ela pensava diferente:
Ficou em silêncio um momento -evidentemente a lembrança era penosa- e continuou:
- Um dia ela sumiu. Deixou um bilhete -"Fui para o spa- e desapareceu. Fiquei desesperado. Sabia que estava à beira de uma tragédia -e não podia evitá-la. Se soubesse em que spa estava, iria até lá, suplicaria que desistisse do emagrecimento. Mas não tinha idéia de onde se escondera.
Pediu mais uma cerveja.
- Seis meses depois ela voltou. E não a reconheci. Dos duzentos quilos que pesava antes, estava reduzida a menos de cem. Elegante, sim, esbelta -mas não era a mulher que eu amava. Ela não percebeu a minha frustração. "Deixei outra lá, ela proclamou, vitoriosa. De fato: os cem quilos que haviam ficado no spa correspondiam a uma outra mulher.
Olho-me, angustiado:
- E esse, exatamente, era o problema. A outra, a que tinha ficado no spa -era a outra que eu amava. A que tinha voltado era uma desconhecida para mim. Fui embora naquela mesma noite e nunca mais voltei. Sei que ela está casada e feliz, o que em absoluto me incomoda: nada tenho a ver com essa mulher esbelta e faceira que atende pelo mesmo nome da minha amada. Porque continuo apaixonado, sim, mas pela que ficou no spa. A que falta era melhor.

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