São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Panorama visto da ponte

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A ponte aérea Rio-Brasília, que estou condenada a frequentar por dever de ofício, é um local privilegiado para o encontro casual de parlamentares, burocratas de Estado e lobistas.
Quando há temporal, as escalas nos aeroportos são prolongadas e, como a política anda bicuda e a economia também, a língua corre solta. As falações econômicas mais frequentes das últimas semanas continuam girando em torno dos juros (altos) e das privatizações (que não andam na velocidade desejada).
De juros escorchantes reclamam todos, estimulados pela própria voz autorizada do presidente da República (antes da crise do Econômico) e dos governadores mais importantes, agoniados com uma crise de endividamento. Juros subsidiados para pagar os sucessivos apoios da bancada rural, reclamam alguns, particularmente os construtores engasgados com um "financiamento de longo prazo" completamente inviável.
Os empresários industriais já nem reclamam mais. Os pequenos, dos têxteis e dos calçados, porque muitos já faliram ou desistiram e não frequentam mais a ponte aérea Rio-Brasília.
Os grandes reclamavam sobretudo do câmbio, mas já se acomodaram às benesses do endividamento externo, para aplicação no mercado financeiro, sobretudo depois que o desaquecimento, a desova de estoques e a folga de liquidez não lhes dão outra alternativa senão voltarem a ser "rentistas" de suas próprias aplicações líquidas.
Os burocratas de Estado preocupam-se com os déficits públicos presentes e futuros. Os mais honestos e competentes reconhecem que uma política de juros altos aumenta os custos da rolagem da dívida pública interna crescente e, portanto, piorarão as condições fiscais nos anos vindouros.
Até quando? Todos reconhecem que a origem do problema está na política de câmbio e de financiamento das reservas, e que estão ocorrendo pressões monetárias que se originam no setor externo e secundariamente no socorro da liquidez dos principais bancos públicos e privados com problemas de inadimplência ou mesmo de insolvência.
Na última semana de outubro, a maioria do público frequentador dos aeroportos voltou a ficar otimista, e, com a desova de estoques, começou a achar que o pior já havia passado.
Devidamente orientados pelos comentaristas da imprensa econômica, voltaram a culpar o déficit orçamentário por todos os males, e o câmbio e os juros parecem esquecidos, já que vários grupos de interesses ganham muito com eles a curto prazo.
A recaída fiscalista, o apoio à reforma administrativa para cortar "gorduras" das máquinas públicas, enfim, o prato requentado da ideologia conservadora está sendo novamente servido.
Escaparam na semana passada a esta reconfortante "tranquilidade" alguns técnicos mais "insiders" do governo, que se assustaram com a recorrência da crise cambial mexicana e a ameaça de ter de socorrer à nossa vizinha Argentina, ameaçada de perder o ministro da Economia e as reservas, entrando em um encilhamento financeiro definitivo.
Os mercados e Bolsas foram atingidos em todo o continente, demonstrando mais uma vez as "virtudes da globalização", mas o de Nova York reagiu mais rapidamente, dado que a economia continua crescendo, a inflação é baixa (como sempre nos últimos anos) e mais uma vez o Fed afastou a possibilidade de cortar (ou subir novamente?) as taxas de juros.
Lá, como aqui, a taxa de juros e os mercados de derivativos são demiurgos de um mercado financeiro desregulado e globalizado. Lá, como aqui, a crítica volta-se novamente para o déficit público, como se ele independesse das dívidas externas e internas e das rolagens arbitradas por agentes financeiros altamente especulativos.
"A visão do Tesouro", diria o falecido Lord Keynes, prevalece uma vez mais.
Aqui, como nos Estados Unidos, destacam-se algumas vozes discordantes. Economistas brasileiros que antes eram considerados "conservadores", como Affonso Celso Pastore, Paulo Rabello de Castro e Ibrahim Eris, aparecem, embora com pouca frequência, como vozes discordantes.
Os últimos dois, em um seminário sobre sistema financeiro, promovido pela Câmara dos Deputados, nos dias 24 e 25 de outubro p.p., mostraram um considerável grau de preocupação com a política monetária e cambial e com a elevada "independência" do Banco Central para agir como bem entender, quebrando o setor público, a pretexto de manter a política de estabilização.
Eris chegou a explodir (como é do meu feitio e não do seu) sobre a "enorme mentira que representa dizer que as altas taxas de juros se devem ao déficit público. As taxas de juros estão altas desde 1992 e os déficits só agora começaram a aparecer; elas se devem sobretudo ao ajuste de balanço de pagamentos e à ansiedade para comprar reservas".
Desta vez, na ponte aérea, suas palavras não encontraram eco. Assunto quente era o descontrole de importantes personalidades do Congresso ao serem questionadas por terem pendurado obras de vulto, impugnadas pelo TCU, nos créditos suplementares para o funcionalismo do próprio Congresso e adjacências.
O "teto" tinha baixado e desembarcamos no Rio debaixo de forte temporal. A chuva continuou caindo até a véspera de Finados.
O Congresso tem coisas urgentes para resolver: o "Fundo Social de Emergência", Imposto de Renda sobre pessoas jurídicas e a reforma administrativa e outras questões menores sobre as quais não há o menor consenso. O panorama visto da ponte baixou a visibilidade, como sempre ocorre quando as matérias são mais "concretas e os interesses (menores) impedem a visão do ambiente global em franca deterioração.
As privatizações serão fatalmente demoradas, aportarão poucos recursos líquidos ao Tesouro e, como finalmente reconhece o ministro do Planejamento, não resolverão nem de longe o problema da redução da dívida mobiliária do setor público.
Quanto à "dívida social", ah bom! Essa continua crescendo como a chuva e a insegurança no Rio de Janeiro e em todo o país.

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